Gabriel Wilhelms
Suponha que um meliante invada e roube a casa de um juiz de primeira instância. Imagine que, preso pelo crime, ele vá ser julgado pelo juiz cuja casa invadiu. Você consideraria este um cenário justo? Teria esse juiz condições de julgá-lo de forma isenta e imparcial?
Suponha agora que, ao invés da casa, nosso juiz teve a filha violada. Imagine que o estuprador seja julgado pelo mesmo juiz, pai de sua vítima. Você consideraria este um cenário justo? Teria esse juiz condições de julgá-lo de forma isenta e imparcial?
Suponha, por fim, que nosso nobre juiz sobreviva a uma tentativa de assassinato, pois a polícia surpreendeu o criminoso no ato antes que o pior ocorresse. Preso, ele será julgado pelo próprio juiz que tentou matar. Você consideraria este um cenário justo? Teria esse juiz condições de julgá-lo de forma isenta e imparcial?
Se você respondeu não para as perguntas anteriores, meus parabéns, você ainda é um ser pensante e entende a importância da imparcialidade nas decisões judiciais. A vítima, ou alguém aparentado com a vítima, não tem condições de decidir de forma isenta e imparcial o futuro do vitimador, e é vergonhoso ter que repetir isso. Portanto, não tenho dúvidas de que você não encontrará nenhuma dificuldade em enxergar a analogia com o caso presente, e concluir que se trata de grande despautério que Alexandre de Moraes seja simultaneamente vítima, ou, melhor, potencial vítima, em inquéritos presididos por ele e nos quais ele é/será o juiz.
Não que isso seja uma novidade, afinal, cumprir-se-ão seis anos em março desde que o STF assumiu simultaneamente o papel de vítima, acusador, investigador e julgador. Ocorre que, de todos os casos, este é o que, até então, escancara melhor o absurdo da coisa, já que Moraes seria uma potencial vítima de assassinato, nos desdobramentos mais recentes do inquérito que investiga um suposto planejamento de golpe contra a posse de Lula, visando a manter Bolsonaro na presidência — não confundir com o inquérito do 8 de janeiro, que é outra coisa. Não obstante, ele é o relator e o responsável pelas prisões daqueles que outrora haviam cogitado atentar contra sua vida.
A coisa fica pior. Se, nas suposições que sugeri no princípio do artigo, tratei de casos concretos, em que a atividade delitiva foi concretizada, não sendo apenas uma ideia, temos o óbvio de que o plano golpista, por mais escabroso que seja, não foi levado a cabo, e tanto Moraes quanto Lula e Alckmin seguem vivinhos da Silva. Se alguma parte do plano tivesse realmente sido levada a cabo — o assassinato de Lula ou Alckmin, por exemplo —, a condução do inquérito por uma de suas potenciais vítimas já seria o suficiente para comprometer a credibilidade da investigação e lançar suspeição sobre a isenção dos julgamentos que dela derivassem. De fato, se tal desatino acontecesse em instâncias inferiores, o caminho natural seria a revisão do processo, ou mesmo a completa anulação em instâncias superiores. Mas o que temos é a própria suprema corte cometendo um abuso que deve soar crasso, não apenas para o mais principiante estudante de Direito, mas para qualquer pessoa familiarizada com o Estado de Direito.
E falando nisso, onde está a OAB? Onde estão os consagrados juristas que, não tenho dúvidas, sabem muito bem o quão escandaloso é tudo isso? Temem represálias? Temem perder ações que eventualmente levem à atenção do STF se criticarem Moraes e seus pares? Sendo esta a razão, temos uma prova ainda mais cabal da perda de confiança na justiça brasileira: os próprios advogados não confiariam na isenção dos ministros da mais alta corte do país. E isso falando de juristas educados em outro estado de coisas, que aprenderam essa ideia já meio démodé de que a justiça deve ser imparcial. Devemos tremer em pensar que tipo de instrução e exemplo que os acadêmicos de Direito de hoje e juristas de amanhã devem estar recebendo. Moraes é professor de Direito. Gilmar Mendes, o “garantista” de ontem, não só é professor como é dono de uma faculdade de Direito.
Eu não sou jurista, sou apenas um simples articulista, mas escrevo aqui com a propriedade de quem sabe estar declarado o óbvio: a vítima, ou potencial vítima, não pode ser, ao mesmo tempo, juiz, e fim de papo. Este artigo é público para qualquer um que queira ler, e desafio qualquer pessoa a provar como o contrário se coadunaria com o Estado de Direito.
Por fim, se as abstrações que propus no princípio não lhe convencem, pois você se vê indiferente à sorte de criminosos e não se importa se eles terão ou não um julgamento isento, contanto que sejam punidos, vou deixar aqui uma suposição.
Suponha que sua filha tenha sido vítima de estupro, e que o estuprador seja o filho de um renomado juiz. Imagine, agora, que este mesmo juiz julgará seu próprio filho pelo crime. Você consideraria este um cenário justo? Teria esse juiz condições de julgá-lo de forma isenta e imparcial?
A coisa sobre a parcialidade, meus caros, é que você nunca pode estar seguro sobre para qual lado ela se inclinará. Se você aceita a legitimidade de a vítima se converter em juiz, a implicação lógica é que aceita tacitamente a possibilidade de que esse mesmo sistema proteja o vitimador. Propus essas abstrações para convidá-los a pensar sobre isso, de forma desvinculada de nomes e personagens que podem suscitar nossas paixões e ofuscar nossa razão, afinal, uma justiça funcional precisa ser também racional.
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/uma-justica-que-sequer-se-esforca-para-parecer-imparcial/
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