J.R. Guzzo
O ministro Luiz Fux, do qual pouco se ouve falar dentro ou fora do STF, está provocando seus quinze minutos de temporal político por ter dito que “o Brasil não tem governo de juízes”. A excitação vem do entendimento que os colegas teriam feito da sua afirmação – Fux, por essa visão das coisas, é suspeito da heresia de sustentar que o Brasil não deveria ser governado por juízes. Se não deveria é porque está sendo, não é mesmo?
Os ministros não podem admitir uma de duas coisas, ou as duas ao mesmo tempo. A primeira é que um colega tenha dado a entender que o STF governa o Brasil. A segunda é que ele também tenha insinuado que o STF não deve governar o Brasil. Ou seja: ninguém pode ter o desplante de contestar o direito de governar que o Supremo deu a si mesmo, mesmo que, segundo os ministros, ele não esteja governando.
Ninguém pode ter o desplante de contestar o direito de governar que o Supremo deu a si mesmo, mesmo que, segundo os ministros, ele não esteja governando
Fux, ao fazer a sua observação, estava comentando que não considerava adequado o STF tomar decisões sobre a “gramatura” da maconha que o cidadão está autorizado a portar consigo – não tem propósito, segundo ele, a Suprema Corte de Justiça da nação ficar discutindo questões tais como a exata quantidade de gramas de fumo que configura um mero “ilícito administrativo” e não um crime.
O ministro, numa raríssima manifestação de lógica ocorrida no STF nos últimos anos, disse que os juízes do tribunal não entendem nada do assunto – como poderiam, então, decidir quantos gramas pode, quantos gramas não pode? Ele próprio se declarou ignorante na matéria e, por isso, não poderia se sentir confortável dando palpites a respeito da “gramatura”. O Congresso que decida isso – e se decidir errado pelo menos estará sendo uma decisão da maioria dos representantes do povo brasileiro.
É perfeitamente racional, e é um sinal da anarquia legal imposta ao Brasil pelo STF, que um ministro tenha de dizer uma obviedade dessas. Mas o Politburo do tribunal não abre mão do direito de governar o Brasil através de palpites, sobre todos os assuntos relativos à atividade humana. Pode, sim senhor, dizer quantos gramas de maconha o indivíduo está autorizado a levar no bolso – como pode dizer que a ciência não estabelece limites no tempo de gravidez para o aborto, ou que o ministro Alexandre de Moraes está liberado para decretar prisões preventivas de natureza perpétua. Não admitem que se diga que as coisas são assim. Mas também não admitem que se contestem os poderes do STF para proceder exatamente dessa forma.
O presidente Barroso, que dirige a divisão de usinagem de fatos do STF, diz que os “críticos” não se lembram da avalanche de ações que caem sobre o tribunal por não haver clareza a respeito do tema. É indispensável, por esse raciocínio, que o Supremo imponha limites para o porte não criminal de maconha – ao mesmo tempo que não admite limite nenhum para o aborto legal.
Se o problema fosse mesmo esse, bastaria o tribunal não aceitar mais o julgamento de causas sobre o assunto, como tem o direito de não discutir nenhuma ação sobre questões pertinentes ao Congresso, ou que não sejam de ordem constitucional. Cinco minutos depois de fazer isso não haverá mais nenhuma causa sobre porte de maconha na agenda do STF. Não é a “judicialização” que perturba o trabalho do Supremo. É a exigência, por parte dos ministros, de que tudo está sujeito à sua deliberação.
O único problema do ministro Fux é a sua sintaxe. Ele diz, textualmente, que “o Brasil não tem governo de juízes”. Tem sim – e tem cada vez mais. Em sua decisão mais recente, o ministro Moraes cassou uma sentença da Justiça Federal do Paraná em favor de um ex-deputado do Partido Novo. No entender do juiz, houve um erro regimental do próprio Moraes num caso de bloqueio de contas do ex-deputado nas redes sociais. Não deveria ter entendido como entendeu, no Brasil de hoje: o ministro não só enterrou sua decisão, como denunciou o juiz ao corregedor nacional de Justiça. “É impensável”, disse Moraes, que uma decisão judicial possa contestar algo que o STF fez. Impensável é que um juiz seja ameaçado pelo Supremo Tribunal Federal do país por ter dado uma sentença compatível com sua consciência. Mas é isso que temos.
J.R. Guzzo, Gazeta do Pövo
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