por Fávio Gordon
Com a provável exceção dos idiotas úteis, os comunistas de destaque foram sempre consumidores vorazes da Nike, do Rolex, do vinho Romanée-Conti, das viagens a Paris e das lagostas
“O maior privilégio da elite dirigente não consiste nos altos salários
pagos aos seus integrantes, mas na existência de toda uma
rede exclusiva de lojas, hospitais, sanatórios e
estabelecimentos que lhes provê —
e a ninguém mais — com bens e serviços.
Nenhum desses benefícios ou privilégios é pago pelos
membros da casta dirigente do seu próprio bolso;
é o orçamento público ou o tesouro do partido que banca tudo.”
Konstantin Simis, URSS: A Sociedade Corrupta — O Mundo Secreto do Capitalismo Soviético
“Ora, por que você fez isso? Não precisava se incomodar. Não comemos essas ‘coisas da cidade’, você sabe.” Essas foram as palavras constrangidas que o advogado e dissidente soviético Konstantin Simis ouviu do casal de amigos que o havia convidado para o jantar. A “coisa da cidade” em questão era um bolo comprado numa confeitaria comum, que, fiel à regra de etiqueta de não chegar à casa dos outros de mãos abanando, a mulher do convidado insistira em levar, muito embora soubesse que, ali naquela casa, o item não faria sucesso.
Inicia-se com esse relato o livro URSS: A Sociedade Corrupta – O Mundo Secreto do Capitalismo Soviético (1982), no qual Simis faz uma radiografia da sociedade soviética de classes, uma sociedade na qual, via mercado negro e corrupção, os altos quadros do governo, do partido e do funcionalismo público — da Nomenklatura, em suma — tinham pleno acesso a produtos importados, finos e exclusivíssimos, enquanto o restante da população padecia na escassez do racionamento planejado, com parco acesso a mercadorias locais de baixa qualidade. O anfitrião do casal Simis integrava a Nomenklatura, condição que, justamente, lhe permitia rejeitar as “coisas da cidade” e optar por consumir apenas as “coisas do Kremlin” — mercadorias adquiridas em lojas privadas de acesso exclusivo à elite do Partido Comunista. Nas palavras do autor: “A elite dirigente não tinha apenas as suas lojas; tinha sua própria agência de ingressos para teatro, suas próprias livrarias (nas quais se achavam livros raros) e suas próprias farmácias (que vendiam remédios importados inexistentes nas farmácias ordinárias). Tudo isso permitia-lhe gozar de vantagens materiais inacessíveis aos cidadãos comuns. Com efeito, qualquer coisa ligada aos governantes era exclusiva e separada”.
Em 1936, no livro A Crise da Democracia, o austromarxista Otto Bauer já denunciara o surgimento de uma classe dominante e economicamente privilegiada na URSS, formada pela cúpula do Partido Comunista local. E também Milovan Djilas, em A Nova Classe (1957), descrevera a oligarquia economicamente privilegiada composta dos membros do Politburo do Partido Comunista Iugoslavo. É esse o padrão em todos os regimes socialistas conhecidos, que, de fato, costumam realizar uma notável transferência de recursos: das mãos do cidadão comum para as da Nomenklatura. O único marxismo existente na prática é, portanto, aquele por meio do qual a propriedade privada dos mais pobres é expropriada e entregue aos mais ricos, os mandatários do regime e seus amigos.
Recordo-me, a propósito, de uma reportagem do Estado de S. Paulo sobre a vida luxuosa dos filhos da elite chavista. Na Venezuela, enquanto a população faminta cata lixo para comer nas ruas, a casta dirigente bolivariana esbanja riqueza. Assim é, por exemplo, o modo de vida de María Gabriela, filha mais velha de Hugo Chávez, que, segundo a revista Forbes, esconde uma fortuna de US$ 4 bilhões em bancos norte-americanos e europeus. Da caçula Rosinés, estudante da Sorbonne (em Paris!), que em 2012 publicou no Instagram uma foto segurando um leque de notas de dólar. Da socialite Daniella Cabello, filha de Diosdaldo Cabello, braço direito de Maduro e chefão do narcotráfico na Venezuela (e que, em 2015, em visita não oficial ao Brasil, foi recebido duas vezes pelo companheiro Lula). De Nicolasito, filho do atual ditador, flagrado numa festa luxuosa dançando sob uma chuva de notas da moeda norte-americana. E, por fim, do próprio ditador Maduro, cuja presença roliça e indecente num restaurante chique de Istambul, onde se fartou de carne (e sangue), foi uma escarrada no rosto de um povo faminto e massacrado.
Fidel Castro viveu sempre como paxá em meio a um povo miserável
As coisas não foram diferentes em Cuba, onde Fidel Castro viveu sempre como paxá em meio a um povo miserável. É o que relata, entre outros, Juan Reinaldo Sánchez, ex-segurança de Fidel, no livro A Vida Secreta de Fidel: as Revelações de Seu Guarda-Costas Pessoal. “Em contradição com o que sempre disse, Fidel jamais renunciou ao conforto capitalista nem optou por viver em austeridade” — escreve Sánchez. “Ao contrário, o seu modo de vida era o de um capitalista, sem nenhuma espécie de limite. Nunca acreditou que os seus discursos o obrigassem a levar a vida austera de todo revolucionário que se preze: nem ele, nem Raúl jamais cumpriram os preceitos que pregavam aos seus compatriotas.”
A mesma realidade é observada na China, onde os membros da elite comunista são todos bilionários, servindo-se de redes offshore para ocultar o próprio patrimônio, conforme revelou o escândalo dos Panama Papers. E no Brasil, onde o autoproclamado “partido dos trabalhadores”, sob o comando do descondenado (e novamente proclamado presidente pelo tribunal companheiro), protagonizou o maior escândalo de corrupção da história mundial, saqueando as estatais para sustentar não apenas os luxos, mas, sobretudo, o projeto totalitário da companheirada, tanto em casa quanto no exterior.
Eis por que nunca tenha apreciado a retórica irônica com que, no campo liberal-conservador, muitos insistem em apontar uma pretensa contradição entre comunismo e riqueza material, ironia materializada em perguntas do tipo “Onde já se viu comunista de iPhone?”. O episódio mais recente a ser objeto desse raciocínio foi o da jovem comunista, do Movimento de Mulheres Olga Benário, que liderou a invasão de um supermercado em Fortaleza, e que, ato contínuo, foi flagrada nas redes sociais em fotos românticas com o namorado em Paris. “Comunista passando férias em Paris? Por que não Cuba?” — foi o comentário geral nas redes, o mesmo de sempre.
Compreende-se o objetivo dos que, ao destacar esses fatos, pretendem denunciar a hipocrisia socialista e a sua total desconexão entre discurso e prática. Ocorre que, agindo assim, acabam reforçando a mitologia autolisonjeira da esquerda, segundo a qual o comunista “verdadeiro” — em contraste com o comunista “de iPhone” — é um sujeito abnegado, ascético e avesso aos luxos capitalistas. Mas, se é verdade que os episódios citados talvez indiquem um descompasso entre o discurso e a prática dos comunistas, por outro lado eles correspondem fielmente à experiência histórica comunista.
Ora, com a provável exceção dos idiotas úteis da arraia miúda militante, os comunistas de destaque, os que chegaram ao poder e marcaram presença real na história, foram sempre consumidores vorazes do iPhone, da Nike, do Rolex de ouro, do vinho Romanée-Conti, das viagens a Paris, das carnes de primeira, das lagostas, dos iates, das dachas luxuosas, e assim por diante… Foi assim na URSS, na China, na Coreia do Norte, nos países africanos, em Cuba, na Venezuela, no Brasil do lulopetismo, e onde quer que um partido comunista tenha chegado ao poder, fomentando um ambiente de corrupção institucionalizada e capitalismo de compadrio. Só há, portanto, o comunista de iPhone, e qualquer outro não passa de idealização, quer na cabeça dos entusiastas, quer na dos críticos.
Revista Oeste
PUBLICADAEMhttp://rota2014.blogspot.com/2022/12/so-ha-o-comunismo-de-iphone-por-favio.html
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