por Ubiratan Jorge Iorio
Parecia que o Brasil havia se livrado desse fetiche doentio desde janeiro de 2019, quando as novas autoridades econômicas mostraram que este não é um bom destino nem uma vocação
Quando se referia à secular pobreza econômica e intelectual da América Latina, Nelson Rodrigues, com aquela conhecida ironia e sagacidade, gostava de dizer que o subdesenvolvimento de um povo, país ou região não se improvisa, porque é uma obra de séculos. É verdade. O tempo passa e mudas frágeis viram árvores frondosas, netos recém-nascidos tornam-se avós experientes, filhotes desdentados transformam-se em adultos caçadores, gerações se sucedem e a pobreza insiste em prevalecer no continente, a atestar incomodamente o veredicto do saudoso dramaturgo. Não há dúvida, a América Latina padece de uma vocação histórica para viver em Pindaíba, onde só há fel e vinagre, penúria e escassez, servidão e dependência do Estado, em que a maioria dos habitantes acredita piamente que é pobre porque existe uma minoria rica que lhe suga até a última gota de sangue e que só há duas soluções para o problema: ganhar na loteria ou esperar pelo favor de algum redentor, mesmo que este seja um mentiroso contumaz ou um ladrão voraz.
Parecia que o Brasil havia se livrado desse fetiche doentio desde janeiro de 2019, quando as novas autoridades econômicas, pela primeira vez na história republicana, mostraram que Pindaíba não é um bom destino e muito menos uma vocação a ser seguida pelo Brasil e rejeitaram as principais práticas que levam à perpetuação do atraso, adotando o caminho virtuoso que conduz a outra terra, Eldorado, onde existem leite e mel, liberdade e economia de mercado e, portanto, opulência, abundância e abastança.
Tratava-se de uma vereda muito simples, resumida na convicção de que o Estado existe para servir aos cidadãos, e não — como sempre foi aqui — para sugá-los e ser um estorvo em suas vidas, e de que a receita a ser adotada para permitir que o desenvolvimento flua naturalmente baseia-se, resumidamente, em: (a) garantir os direitos naturais à vida, à liberdade e à propriedade; (b) zelar pela segurança física dos cidadãos e territorial do país; (c) cuidar para que as regras do jogo sejam simples e estáveis, para que não exista insegurança jurídica; (d) deixar a geração de riqueza a cargo da liberdade de escolha dos indivíduos, ou seja, não atrapalhar o funcionamento da economia de mercado em ambiente de preços livres; e (e) manter as contas públicas em equilíbrio, tributar pouco, endividar-se nunca e jamais financiar seus gastos com emissão de moeda.
Embarcamos e estávamos em pleno voo direto para Eldorado e tudo levava a crer que havíamos nos livrado do falso teorema — intuído por Nelson Rodrigues e sabido de cor e salteado por qualquer economista com um mínimo de preparo — de que só existem pobres porque há ricos, ou, similarmente, de que só existe riqueza porque há pobreza, já que a economia, segundo as cabeças baldias esquerdistas — sempre repletas de vento “estocado”, mas vazias de sabedoria —, seria um jogo não cooperativo e de soma zero, em que os indivíduos não contribuem uns com os outros, uma vez que são sempre adversários e em que para que alguém ganhe é necessário que outro perca. Uma besteira colossal, que se recusam a reconhecer como tal, mas que repetem de maneira irracional.
Porém, quando as autoridades eleitorais anunciaram o resultado da eleição presidencial, o comandante do avião deu meia-volta e retornou ao aeroporto de origem. Seus passageiros — a maioria dos quais involuntariamente, muitos dos quais sem terem a mais vaga ideia do destino lúgubre para o qual agora seriam embarcados e sem poderem sequer exigir explicações, sob a pena de encarceramento — estão neste momento na fila do check in do voo que decolará no primeiro dia de 2023 para Pindaíba. É inacreditável!
É interessante fazer uma breve descrição da economia brasileira das últimas décadas. Do início dos anos 1980 até hoje, os movimentos da nossa economia têm sido como os dos ônibus dentro das cidades: um para e anda incessante, ou, para manter a analogia anterior, de céu de brigadeiro alternado com nuvens de turbulências. Os poucos brasileiros que sabem separar causas de efeitos sempre afirmaram que as raízes do problema são o culto ao Estado provedor e os vícios de nosso sistema político-institucional, incapaz de submeter o setor público à forte dieta de emagrecimento recomendada pela aritmética elementar da vida, aquela que brotava dos lápis que os quitandeiros de outrora — homens simples, mas que sabiam que trabalhar “no vermelho” é suicídio — traziam presos às orelhas. Mas a precariedade institucional, a pobreza intelectual e a tendência irracional a confundir efeitos e causas são obras de séculos…
Por isso, assistimos durante quatro décadas a um préstito de trapalhadas, um desfile de incompetências. O governo Sarney, que marcou a transição para a nossa esquisita democracia, deu asas à crença de que se poderia debelar a inflação mediante remédios de doce sabor, promovendo três congelamentos de preços, acompanhados da pirotecnia das desindexações, tablitas e outros artefatos, provocando uma inflação de preços que ultrapassou os 80% ao mês, uma relação dívida interna/PIB potencialmente explosiva e a inserção na pobreza e na miséria de um forte contingente de “brasileiros e brasileiras”, como dizia aquele ex-presidente, feito depois membro da Academia Brasileira de Letras por sua obra imortal sobre marimbondos ardentes.
Collor, por sua vez, apesar de todo o discurso liberal, iniciou o mandato com um confisco de 80% da poupança financeira, pensando que assim estaria debelando a inflação e, não satisfeito, fez dois congelamentos de preços, gerando mais inflação, mais pobreza e forte queda em nossa credibilidade externa. Após o seu impeachment, já sob a regência de Itamar Franco, a inflação disparou a ponto de, no ano eleitoral de 1994, o governo ter recorrido ao Plano Real, que, por sua correta concepção, derrubou temporariamente o crescimento dos preços e elegeu aquele que, por oito anos, ocuparia o cargo mais importante do país.
Já se acumulou um conjunto aterrador de notícias produzidas pela “equipe de transição”, formada por uma multidão inconcebível e heterogênea, em que batem cabeças os incompetentes, os decadentes e os prepotentes
Embora com a faca, o queijo e um enorme capital político nas mãos, o PSDB sempre foi um partido da esquerda fabiana e, portanto, afeito àquela “obra de séculos” a que aludiu Nelson Rodrigues, o que levou o governo tucano a impor um ritmo excessivamente lento, um devagar quase parando e executado envergonhadamente, às reformas do Estado que prometera fazer, impedindo que a mudança no regime fiscal — que complementaria e sustentaria o Real — fosse levada adiante. Se, sob a ótica e a ética suja da política isto rendeu mais quatro anos de mandato a Fernando Henrique, a conta foi paga pela elevação da carga tributária, a sobrevalorização cambial, a queima de reservas, a subida da taxa de juros real e o aumento do endividamento e do desemprego.
Sobreveio o período das trevas dos governos petistas, a outra lâmina da tesoura, com todos os problemas sobejamente conhecidos, uma incrível sucessão de agressões à ética, à boa prática política, à responsabilidade fiscal e à economia mais elementar. Por ocasião do impedimento da criatura que via cachorros atrás de crianças, em 2016, havia 14 milhões de brasileiros desempregados. Veio Temer, que até deu uma arrumadinha na casa, mas longe da necessária, pois lhe faltavam tempo, convicção e disposição.
E então, a partir de 2019, a visão liberal da equipe liderada por Paulo Guedes — um economista da boa e velha tradição da Escola de Chicago e que depois se aprimorou com tintas da Escola Austríaca — gerou políticas indubitavelmente vitoriosas, mesmo considerando os três fortes choques, que foram a pandemia, a crise energética e o conflito da Rússia com a Ucrânia, assim como o ataque permanente, irresponsável e impatriótico por parte da velha imprensa, o inacreditável ativismo do Judiciário, especialmente o conduzido pela Corte Suprema, e os boicotes à pauta liberal perpetrados por sucessivos presidentes das duas Casas ditas “do povo” que formam o Congresso. Estávamos em velocidade de cruzeiro e prestes a desembarcar em Eldorado. Os diversos indicadores de desempenho econômico estão aí para atestar isso e só não os vê quem não quer ou é mal-intencionado.
Com a vitória anunciada da chapa de esquerda, tudo começou a se passar como se o avião tivesse retornado ao aeroporto de origem e aterrissado e agora esteja se preparando para decolar rumo ao passado. Cada anúncio de alguém para assumir um cargo importante no eventual novo governo é uma verdadeira tortura. Já se acumulou um conjunto aterrador de notícias produzidas pela “equipe de transição”, formada por uma multidão inconcebível e heterogênea, em que batem cabeças os incompetentes, os decadentes, os prepotentes e até alguns que no passado chegaram a ser tratados pela Justiça como delinquentes, todos em busca de cargos e influência política em Pindaíba.
Parece um pesadelo sem fim. Na economia — e não é preciso citar nomes —, é como se o presidente de um clube de futebol tivesse contratado uma nova comissão técnica, e esta já anunciasse de antemão que não entende nada do jogo, mas que tem confiança de que vai vencer todas as partidas. De fato, muitas medidas que estão sendo cogitadas assustam e arrepiam até vampiros calejados e especializados em aterrorizar pessoas à meia-noite. Vou citar algumas, limitando-me à esfera da economia.
Uma delas, acabar com a austeridade fiscal, anunciando o estouro do teto de gastos por meio da PEC da Gastança, uma irresponsabilidade que conta com a ajuda visível da Corte Suprema, que excluiu monocraticamente os recursos que serão destinados ao Auxílio Brasil (Bolsa Família) desse teto, e também sob os auspícios do Congresso, que incluiu essa excrescência na pauta em regime de urgência. A sustentar teoricamente essa intenção, a “Teoria Monetária Moderna”, uma enorme baboseira que, se fosse verdadeira, já teria acabado com todos os pobres do mundo, porque sustenta, inconcebivelmente, que governos devem e precisam gastar e que isso não é problema.
Outras, não menos assustadoras, são: o aumento do número de ministérios dos atuais 23 para 37, ou seja, 60% a mais; a revogação da reforma trabalhista, para voltar a entupir os sindicalistas amigos de dinheiro; a reversão da reforma da previdência; a interrupção do programa de privatizações e a tentativa de reverter algumas em andamento; uma pseudorreforma tributária com a taxação dos “ricos”; a adoção de uma moeda única para o desvalido Mercosul, com vistas à criação da Ursal (União das Repúblicas Socialistas da América Latina), há tempos pretendida pelo Foro de São Paulo; a reativação do crédito subsidiado pelos bancos estatais; os empréstimos sem retorno do BNDES a ditaduras amigas; a volta da Petrobras às mesmas mãos que a surrupiaram; uma provável tentativa de abalar a independência do Banco Central e muitas outras.
Esses erros anunciados — e mais alguns que certamente ainda o serão — revelam que na economia de Pindaíba veremos, seguramente, dívida pública, juros, impostos, preços e dólar para cima e produção e emprego para baixo. E, por fim, veremos a supressão progressiva das liberdades individuais, com a colaboração das parcelas do Judiciário simpáticas ao socialismo e do Legislativo que ou são esquerdistas ou simplesmente se deixam seduzir por verbas ocultas em “negociações e entendimentos”.
Em resumo, o povo brasileiro — que, seguramente, não votou no socialismo, não quer o socialismo e repudia o socialismo — está correndo o grave risco de que tentem implantar esse sistema perverso de cima para baixo, com falsos argumentos que tentam induzi-lo a acreditar que foi uma escolha “democrática”. Isso não é aceitável.
Ubiratan Jorge Iorio é economista, professor e escritor.
Instagram: @ubiratanjorgeiorio
Twitter: @biraiorio
Revista Oeste]
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2022/12/voo-expresso-para-pindaiba-por-ubiratan.html
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