lembra Augusto Nunes Loola: 'Eu sou capaz de dar ao Roberto Jefferson um cheque em branco e dormir tranquilo'
Em outubro de 2004, o deputado federal Roberto Jefferson, presidente do PTB, convidou o presidente Lula para um jantar em seu apartamento funcional. Chefe da tropa de choque do curto governo Fernando Collor, Jefferson se tornara amigo e aliado do antigo antagonista pouco depois da chegada ao Planalto do chefão do PT. E vinha reunindo desde o mês anterior provas e evidências de uma história cabeluda: o PT andava distribuindo muito dinheiro entre partidos da volátil “base aliada”, para garantir a aprovação de projetos que o governo considerava relevantes. Parlamentares muito arredios recebiam pagamentos a cada 30 dias. Era o que começava a ser chamado de “mensalão”.
Jefferson tratara do assunto com alguns deputados ou ministros de Lula, mas decidiu não incluir no cardápio o prato especialmente indigesto. Durante o jantar, homenageou o presidente com a interpretação de músicas brasileiras, das quais a mais aplaudida foi Eu Sei Que Vou Te Amar. No fim da noitada, o anfitrião elogiou a comida, a trilha sonora e a prosa agradável do dono da casa. Já na calçada, com jornalistas por perto, fez o afago superlativo. “Eu sou capaz de dar ao Roberto Jefferson um cheque em branco e dormir tranquilo”, declamou Lula.
Aqueles parceiros improváveis pareciam felizes com dois anos de convívio harmonioso. Parecia infinito. E foi, enquanto durou. Começou a agonizar em 14 de maio de 2005, quando a revista Veja divulgou imagens e diálogos extraídos de uma fita gravada clandestinamente na sala de Maurício Marinho, chefe do Departamento de Contratação e Administração de Material dos Correios. A um grupo de visitantes disfarçados de empresários, ansiosos por fazer negócios pela via rápida, Marinho afirmou que a veneranda instituição fora fatiada entre partidos fiéis ao governo. E que o setor que administrava estava no naco do PTB.
Ali, emendou Marinho, mandava e desmandava o presidente da legenda. Jefferson escolhia fornecedores, monitorava licitações, fixava preços e determinava o tamanho da propina. Marinho gabou-se da intimidade com o chefe. No clímax da gravação em vídeo divulgado pela TV, a mão de um visitante se estende para entregar R$ 3 mil a Marinho. O funcionário corrupto enfia a propina no bolso do paletó amarfanhado sem conferir o valor, sem sequer uma olhadela ampliada pelos óculos de lentes grossas. “Ele fica contando vantagem para ganhar propinas”, reagiu Jefferson publicamente. Em conversas reservadas, atribuiu o episódio a uma emboscada urdida por gente do governo. “Continuo competente como atirador”, avisou. “É bom que eles saibam disso.”
Em 18 de maio, ao saber que líderes de partidos da oposição haviam proposto a instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para vasculhar bandalheiras nos Correios, o presidente Lula procurou tranquilizar o amigo. “Jefferson é um parceiro e assim será tratado”, prometeu. Entre janeiro e maio, os investimentos feitos por todos os ministérios haviam somado R$ 271 milhões. Para conter a ofensiva dos partidários da CPI, os ministros José Dirceu e Aldo Rebelo conseguiu a liberação de R$ 400 milhões para verbas solicitadas por parlamentares. O esforço para seduzir deputados que haviam apoiado a criação da CPI (Jefferson estava entre eles) tropeçou numa segunda pedra no caminho, novamente colocada pela revista Veja. Em 20 de maio, outra reportagem comprovou o desvio de dinheiro do Instituto de Resseguros do Brasil (IRB) para os cofres do PTB.
Só na terceira visita ao apartamento do aliado ofendido o aflito José Dirceu conseguiu que a porta se abrisse. Não foi fácil convencer Jefferson a retirar sua assinatura do requerimento para a instauração da CPI. O chefe da Casa Civil estava compreensivelmente angustiado. Até 25 de maio, quando 234 deputados e 23 senadores aprovaram a criação de uma CPI formada por integrantes das duas Casas do Congresso, Dirceu repetiu em vários gabinetes do Planalto a frase pressaga: “Se essa CPI sair, o Delúbio e o Silvinho não vão escapar”. O Brasil da planície ainda não fora apresentado a Delúbio Soares,
tesoureiro do PT, e Sílvio Pereira, secretário-geral. Jefferson conhecia a dupla muito bem. Ao saber do mantra de Dirceu, deduziu que o esforço para barrar a CPI não se destinara a protegê-lo, mas a livrar do perigo o PT. “Querem que a bomba estoure no meu colo”, disse a um companheiro do PTB. “Não vou deixar.”
No físico e nos modos, o deputado que se tornaria uma celebridade nacional no inverno de 2005 pouco tinha a ver o Roberto Jefferson que se tornou conhecido como apresentador do programa O Povo na TV e elegeu-se deputado federal em 1982. Aos 30 anos, formado em Direito, Jefferson usava óculos de aros e pesava mais de 120 quilos. Depois de um longo estágio no baixo clero, enxergou no começo do fim da Era Collor a porta de saída do semianonimato. Bom orador, passou a usar a tribuna com frequência, com um revólver na cintura que o paletó mal camuflava. No plenário, interrompia aos
berros oradores inimigos. Na CPI, esbanjava truculência.
JEFFERSON REPAGINADO
Depois de um período de hibernação recomendado pela queda de Collor, ressurgiu no Congresso um Roberto Jefferson radicalmente repaginado. O penteado, os ternos, as gravatas, os sapatos — tudo parecia saído de revistas de moda masculina. Lentes de contato haviam sepultado os óculos anacrônicos. O rosto remoçado pela plástica perdera a expressão zangada. A redução cirúrgica do estômago redesenhara a silhueta. As mudanças não haviam parado por aí. Sessões de tiro ao alvo haviam sido trocadas por aulas de canto lírico. Todos os dias, uma professora particular comparecia ao aparta-
mento funcional para aveludar a voz e ampliar o repertório do tenor aprendiz. E tinha decorado uma penca de óperas. O temperamento beligerante pareceu adormecido entre janeiro de 2002 e maio de 2005. Foi despertado pelo som da fúria.
A decisão de fazer a guerra foi determinada pelos instintos primitivos do antigo Jefferson. Como fazê-la, isso ficaria a cargo do novo, que se valeria do trunfo mortal: 23 anos depois da chegada a Brasília, tornara-se um dos mais talentosos oradores do Brasil e o melhor tribuno de um Congresso infestado de torturadores do idioma. Em 28 de maio, concluído o planejamento, ele fez chegar à Casa Civil uma última advertência: quando o naufrágio viesse, afundaria atirando — e não afundaria sozinho. Era a declaração de guerra, mas os estrategistas do governo viram na mensagem apenas um pedido de socorro.
A CPI estava no fim dos trabalhos de parto quando Jefferson disparou a primeira rajada de chumbo grosso. Numa entrevista publicada pela Folha em 6 de junho de 2005, afirmou que, já no primeiro ano da Era Petista, parlamentares da “base aliada” passaram a receber pagamentos periódicos em troca da fidelidade ao governo. A rede de corrupção era administrada por Delúbio Soares, tesoureiro da executiva nacional do PT, com o auxílio do secretário-geral Silvio Pereira, que cuidava do setor de nomeações espertas: os indicados pousavam invariavelmente nas cercanias de cofres federais abarrotados.
A cúpula da quadrilha, detalhou o entrevistado, envolvia dirigentes do Partido Liberal e do Partido Popular, que cuidavam da distribuição do “mensalão”. As cifras chegavam à faixa dos R$ 30 mil quando se aproximava o dia da votação de algum projeto especialmente valorizado pelo governo. Em setembro de 2004, Jefferson havia percorrido alguns gabinetes cinco-estrelas para denunciar a bandalheira na Câmara. O ministro da Integração Nacional, Ciro Gomes, achou aquilo inverossímil. O ministro da Fazenda, Antônio Palocci, desconversou: o assunto estava fora de sua área de ação. José Dirceu, depois de ouvir o relato, deu um soco na mesa antes de repassar a culpa para o primeiro nome que lhe veio à cabeça: “Eu falei para o Delúbio não fazer isso”. Em janeiro de 2005, enfim decidira tratar do caso diretamente com Lula.
Lula sabia de tudo
Segundo Jefferson, o presidente acompanhou o relato com expressão perplexa. Em seguida, chorou e murmurou palavras de gratidão. No abraço de despedida, prometeu providências imediatas. Não tomou nenhuma — até porque nada tem de suicida. Sempre soube de tudo: ninguém no PT fez ou faz qualquer coisa sem a autorização do velho pajé. Para sobreviver ao escândalo, primeiro declarou-se traído, depois jurou que o Mensalão foi uma trama forjada por conspiradores inconformados com um governo que só pensava nos desvalidos. Assim que deixasse a Presidência, advertiu, dedicaria o resto da vida a investigar a trama e desmascarar seus arquitetos. O que fez foi ampliar o prontuário que desembocaria no Petrolão. O maior esquema corrupto de todos os tempos provaria que Lula não tem remédio. Não existe cura para ladroagem compulsiva.
“Esse cara sempre foi um maluco muito filho da puta”, rosnou Lula aos companheiros que reproduziram a entrevista em voz alta para poupar um inimigo de leituras. Certamente repetiu o palavrão ao longo das sessões que só não abreviaram o mandato porque havia no Brasil a oposição com que sonha todo governante delinquente. Sozinho, Jefferson devassou as catacumbas do Mensalão. Depois da entrevista à Folha, vieram os depoimentos minuciosos, contundentes e irrefutáveis na Comissão de Ética da Câmara e na CPI que deveria investigar os Correios e acabou escancarando a corrupção institucionalizada.
Jefferson sabia desde sempre que teria o mandato cassado e seria punido pela Justiça. Ao admitir que embolsara, em nome do PTB, R$ 4 milhões repassados ilegalmente por dirigentes do PT, transformara-se em réu confesso. Mas afundou atirando. Dirceu perdeu a Casa Civil e o gabinete na Câmara. Conheceria a morte política em 2012, quando o Supremo Tribunal Federal enfim mandou para a cadeia a maior parte dos mensaleiros. Para que Lula escapasse, o Supremo acabou inventando outra brasileirice: a quadrilha sem chefe.
Nesta semana, acossados pelo pavor da derrota no segundo turno, o candidato a um terceiro mandato e seus devotos não resistiram à tentação de usar como arma eleitoral a volta de Jefferson às manchetes. Má ideia. Ansioso para associar o ex-deputado a Jair Bolsonaro, o setentão que carrega no lombo as duas maiores roubalheiras da história republicana deve preparar-se para ouvir no debate na Globo pelo menos dois lembretes. Primeiro: é preciso ser muito cínico para continuar fazendo de conta que o Mensalão não existiu. Segundo: é preciso ser muito amigo de alguém para oferecer-lhe um cheque em branco.
Revista Oeste
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