Fernão Lara Mesquita, em O Vespeiro
Ainda que eleições primárias diretas tenham ocorrido aqui e ali nas colônias americanas tão cedo quanto 1840, o sistema só começou a se generalizar na virada para o século 20. A reforma para torná-las obrigatórias, uma batalha que de certa forma ainda está em curso nos Estados Unidos, foi extraída a fórceps dentro do movimento de resgate da democracia americana das garras da corrupção em que a tinha mergulhado a combinação do “pecado original” dos “fundadores” de blindar os mandatos dos políticos eleitos enquanto durassem (4 anos) com o advento das revoluções concomitantes industrial e gerencial numa sociedade agrária institucionalmente despreparada para enfrentar os novos desafios.
Os Estados Unidos eram ainda apenas as colônias da costa do Atlântico quando as ferrovias – como hoje a Amazon com relação ao mercado global – “abriram” todo o resto do continente até o Pacífico, tornando-se, no entanto o único canal de acesso a esse imenso cabedal de riquezas, assim como de escoamento para o mercado consumidor de tudo que nele pudesse ser produzido.
Isso propiciou que empresários inescrupulosos mancomunados com políticos mais inescrupulosos ainda, que elegiam e reelegiam com seus inesgotáveis rios de dinheiro, se unissem para esmagar e açambarcar concorrentes negando-lhes transporte e servindo-lhes leis de encomenda, criar monopólios e fortunas nunca antes sonhadas, maiores que o PIB da maioria dos países, história a que você, leitor, poderá ter acesso em detalhes inscrevendo os termos “Progressive Era”, “Theodore Roosevelt”, “democracia direta” ou “antitruste” na ferramenta de busca deste Vespeiro, no alto à direita desta mesma página.
Bebendo na fonte da democracia suíça que precedera a americana em quase meio milênio, a imprensa democrática e os reformadores da Progressive Era (1890-1920) importaram os remédios da democracia direta que lá se praticava. As ferramentas da iniciativa e do referendo popular de leis abriram a possibilidade de passar leis sem o concurso dos legislativos controlados pelas máfias partidárias corruptas e isso projetou a democracia moderna para um novo patamar.
O estado do Oregon foi o primeiro a conseguir implantar a iniciativa e o referendo em 1902 e, com eles nas mãos, impôs aos políticos também o recall em 1908. Com essa trinca poderosamente desinfectante nas mãos o povo do Oregon foi o primeiro a instituir eleições diretas para o Senado estadual, até então eleito indiretamente, e primárias diretas para presidente. A Califórnia logo copiou o “Oregon System” e abriu a corrida nacional para empurrar o povo mais para cima na hierarquia do poder.
Tão cedo quanto 1917 todos os estados menos quatro, onde a soberania do povo passara a ser cada vez mais direta e absoluta, já tinham adotado primárias diretas para todas as eleições estaduais e municipais. Não eram mais os donos dos partidos, eram diretamente os eleitores que decidiam quem podia ou não candidatar-se a qualquer cargo. É esse conjunto, que resultou no golpe de morte na espinha dorsal da cadeia de lealdades que sustentava a corrupção, que explica o enriquecimento exponencial do povo americano ao longo do século 20.
Para estender esse direito ao âmbito federal é que começou, no entanto, o braço de ferro com os partidos que escondiam-se atras da dupla soberania dos estados e da União e da omissão da constituição a esse respeito que continua a ser o diferencial que põe a democracia americana ainda para trás do seu modelo suíço.
A resistência – política e judiciária – foi feroz.
A primeira e maior das porteiras foi, no entanto, arrombada com a abertura às candidaturas independentes, algo impossível de contestar num regime que pretendesse continuar merecendo o qualificativo de “democracia representativa”. Com variações entre os estados, hoje qualquer cidadão americano pode candidatar-se a presidente – e daí para baixo a qualquer coisa – e ter seu nome figurando na cédula que chega ao eleitorado apenas colhendo assinaturas de eleitores (no limite mais alto, 1% dos votos necessários para eleger um deputado federal) sem ter de pedir licença a mais ninguém, ou montando um novo partido, operação ainda mais fácil desde que se tenha respaldo de eleitores.
Até os anos 1970s somente metade dos estados americanos tinha conseguido instituir primárias obrigatórias para presidente da república. Hoje elas acontecem em todos os estados mas cada partido, em cada estado, resolve como faz as suas. Ha “primárias fechadas” em 13 estados. São como as do PSDB. Só membros registrados do partido podem propor e votar em candidatos. Há “primárias semi-fechadas” em 15 estados, em que membros inscritos em cada partido podem votar só nos candidatos dos seus partidos mas o resto do eleitorado não filiado a partidos também pode votar nas primárias dos outros partidos. Somente 14 estados têm “primárias abertas” com todos os eleitores podendo votar em qualquer primária de qualquer partido. E ha ainda outras variações…
Assim, ainda que seja altamente improvável alguém conseguir eleger-se num pleito nacional sem apoiar-se na estrutura de um grande partido, não é impossível. E essa possibilidade torna todos os candidatos bem mais humildes e “client oriented“. E tudo, claro, sempre obedece rigorosamente ao sistema de eleição distrital pura. A proporção de votos recebidos por cada partido em cada distrito é obrigatoriamente reproduzida pelos delegados das convenções com direito a voto nas primárias partidárias.
Como já foi tantas vezes explicado neste site, a FIDELIDADE DA REPRESENTAÇÃO é a única coisa inegociável da democracia americana na qual todo poder DE FATO “emana do povo”. Tudo permanece, portanto, sempre em aberto, mudando ao sabor das leis de iniciativa dos eleitores que eventualmente forem aprovadas em cada estado a cada ano. O que é decisivo é que as alterações do modelo vêm sempre de baixo – dos eleitores – e são impostas partido acima – aos políticos – e não o contrário como acontece nesse nosso esdrúxulo sistema de “governo do povo” (“democracia”) sem povo.
Fica a seu critério, portanto, avaliar se as primárias para “escolher” o candidato a presidente do PSDB entre as opções previamente postas pelos “donos” do partido em disputa entre si têm, como as americanas, o sentido de livrar o partido dos seus caciques e submeter-se à vontade dos eleitores, ou se é apenas mais um expediente “murístico” dos “tucanos raiz” para não ter de afirmar em voz alta o seu horror a João Dória numa conjuntura de deserto de talentos em que fica muito difícil atacá-lo pelo, digamos, “excesso de competência” que justifica a figadal rejeição que ele sofre por parte de um enorme contingente do eleitorado nacional.
O que quer o PSDB, afinal, é o melhor presidente ou o melhor candidato para levá-lo de volta ao poder, qualquer que seja ele? Pôr o povo no poder ou manter o seu poder sobre o povo?
O que se pode saber com certeza desde já é que, como todos os outros ensaios de “3a via” que se insinuam por aí, nenhum dos quais tem qualquer proposta para desentortar o sistema político e eleitoral que aleija o Brasil, tudo que o PSDB oferece à consideração do eleitorado nacional é mais um entre três “eus” possíveis como única garantia dos resultados todos que só a democracia pode produzir mas que o PSDB, como todos os demais, promete entregar só pelos belos olhos do seu candidato, sem submeter-se à democracia.
Esta – que não haja mais enganos depois de tantos! – só se instala quando o povo manda no governo. E o povo só passa a mandar no governo quando conquista os poderes do recall, da iniciativa e do referendo de leis e se torna dono dos mandatos dos políticos revogáveis a qualquer momento.
Aí, sim, eles passam a trabalhar PARA O POVO. O resto é tapeação.
*Fernão Lara Mesquita em Vespeiro.com
publicadaemhttps://www.puggina.org/outros-autores-artigo/primarias-do-psdb-e-outras-candidaturas-ocas__17571
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