por Dagomir Marquezi
A pandemia provocou em muita gente um estado de letargia e pânico infantil, uma espécie de morte em vida
“Eu sei que determinada rua pela qual eu já passei não tornará a ouvir o som dos meus passos. Cada vez que me despeço de uma pessoa pode ser que ela esteja me vendo pela última vez. A morte, surda, caminha ao meu lado e eu não sei em que esquina ela vai me beijar. Qual será a forma da minha morte? Um acidente de carro? O coração que se recusa a bater no próximo minuto? A anestesia mal aplicada? A vida mal vivida, a ferida mal curada, a dor já envelhecida? O câncer já espalhado e ainda escondido? Ou, até quem sabe, um escorregão idiota num dia de sol?”
Raul Seixas — Canto para minha Morte
Por este planeta já passaram aproximadamente 117 bilhões de seres humanos. Destes, 109 bilhões já morreram. O que significa que tivemos 109 bilhões de experiências únicas de morte. Algumas foram naturais, outras premeditadas ou acidentais. Houve mortes súbitas, lentas, indolores, sofridas. Mas ela sempre aparece.
Aprendemos a desenvolver — especialmente nas culturas ocidentais — um medo irracional da morte, a negação atávica de uma experiência à qual estamos todos destinados a passar. “Eu não tenho medo da morte”, disse um dia Woody Allen. “Só não quero estar presente quando acontecer.” Em parte, essa rejeição está ligada ao sofrimento pelo qual passamos com a partida de pessoas queridas. Lidar com a perda não é um sofrimento exclusivamente humano. Muitas outras espécies animais choram seus mortos e praticam algum tipo de cerimônia fúnebre. Para um elefante, é doloroso ver a morte de um membro de sua manada. Mas é um fato natural, como o nascimento.
Os humanos não se conformam e procuram vencer a morte de todas as formas possíveis. A Enciclopédia Britânica cita civilizações antigas como as de egípcios, zoroastristas e hindus, que desenvolveram complexos conceitos para descrever a vida após a falência dos sinais vitais. Para ateus em geral, a morte seria o ponto-final, a última página, um corpo que se desfaz em miasmas e é devorado por vermes. Segundo eles, toda religião é ilusória. Para os que acreditam em vida espiritual, os ateus não teriam entendido que o verdadeiro sentido de nossa passagem pela Terra é justamente a preparação para o que vem depois.
Mas a morte em si permanece para crentes e ateus como a maior de todas as angústias. Carregamos a ansiedade existencial de desconhecer as respostas para duas questões fundamentais: 1) quando eu vou morrer? e 2) como eu vou morrer?. Tudo o que temos em mente é que ela caminha junto a nós, silenciosa e invisível, por toda a nossa vida. E não sabemos em que esquina ela vai nos beijar. A morte beijou Raul Seixas aos 44 anos, durante uma madrugada de 1989. Foi representada por uma pancreatite fulminante, diabetes e uma longa estrada no alcoolismo desenfreado.
Todos nós continuamos brevemente vivos mesmo depois que um médico decreta nosso fim. Segundo a Britânica, um minieletrocardiograma pode ser registrado vários minutos após a parada cardíaca. Afinal, um coração bate cerca de 2,7 bilhões de vezes durante uma vida. E tenta uma última chance de bombear sangue quando tudo o mais parece ter acabado. Três horas depois do falecimento, nossas pupilas ainda reagem, e músculos se contraem quando tocados.
Sempre houve essa dificuldade de identificar quando um ser humano atingiu o tal ponto sem retorno. Gregos antigos mantinham seus cadáveres à vista três dias antes de ser enterrados. Os romanos esticavam esse prazo para até oito dias. A preocupação cresceu muito durante o século 19, com histórias (algumas reais) de pessoas catalépticas que despertavam de um aparente óbito presas num caixão debaixo da terra. Essas narrativas inspiraram grandes autores de ficção de terror, como Edgar Allan Poe.
A palavra “genocida” foi usada de maneira tão vulgar e leviana que se esvaziou em seu trágico significado
A partir da segunda metade do século 20, a medicina se dedicou a enganar a morte por meio de aparelhos que mantêm o coração e os pulmões funcionando artificialmente, e da alimentação por via intravenosa quando o aparelho digestivo não funciona mais. Os avanços nesse adiamento da morte estão indo tão longe que já não nos espantamos tanto quando alguém chega a mais de 100 anos de idade.
E, no entanto, continuamos morrendo. E toda morte é individual, como toda vida. Esse fato é esquecido quando passamos a pensar a morte em termos coletivos. Como nos 45 milhões de chineses mortos durante o reinado de Mao Tsé-tung, ou o 1,5 milhão de armênios massacrados pelos turcos no tempo da 1ª Guerra, ou ainda os 20 milhões de cadáveres na conta de Josef Stalin.
O exemplo mais simbólico dessa coletivização são os “6 milhões de judeus” mortos durante o regime nazista. É uma tragédia monumental, mas hoje encaramos o desastre desencadeado pelo hitlerismo como um número redondo de sete algarismos. O horror se dissolve no número, por maior que seja.
Caminho oposto é seguido pelo Museu Auschwitz. Por meio de sua conta no Twitter, a instituição individualiza cada uma das aproximadamente 1.100.000 mortes ocorridas nesse campo de concentração nazista, localizado na Polônia. Vemos a foto de cada vítima e um resumo de sua vida, às vezes breve demais.
Joseph Bremmer, judeu holandês nascido em Roterdã em 28 de julho de 1940. Em setembro de 1943, foi deportado para Auschwitz e assassinado numa câmara de gás. Tinha 3 anos de idade.
Vera Frisch, judia nascida em Osijek, Iugoslávia, em 27 de julho de 1932. Foi morta na câmara de gás de Auschwitz aos 11 ou 12 anos.
Jan Kolaczkowski, polonês de Krakow, pedreiro de profissão, nascido em 27 de julho de 1904. Foi transformado no prisioneiro 35709 de Auschwitz, onde faleceu em 17 de agosto de 1942, aos 38 anos.
Adolfina Mutz, operária polonesa nascida em Chandziówka em 27 de julho de 1910. Prisioneira número 11994 em Auschwitz a partir de 27 de julho de 1942, morreu em 2 de novembro, aos 32 anos.
Ilona Raabová, judia checa nascida em Praga em 15 de julho de 1934. Deportada para Auschwitz em 23 de outubro de 1944, morreu na câmara de gás aos 10 anos.
Ervin David, húngaro judeu nascido em 18 de julho de 1938. Assassinado numa câmara de gás de Auschwitz em junho de 1944, antes de completar 6 anos.
Pronto. Dos 6 milhões de mortos, seis deixaram de ser um número. São nomes, rostos, histórias, trajetórias individuais. Coletivizar mortos em números arredondados é como matá-los pela segunda vez. O nome de cada uma das 2.983 vítimas do atentado de 2001 ao World Trade Center foi registrado em 152 placas de bronze, hoje expostas no Museu e Memorial do 11 de Setembro, em Nova York.
O Brasil não teve o mesmo respeito pelas vítimas da covid-19. Elas viraram um número corrompido, em que é difícil confiar. “552 mil mortos” virou uma plaquinha de identificação para que um senador pratique sua sórdida demagogia. A palavra “genocida” foi usada de maneira tão vulgar e leviana que se esvaziou em seu trágico significado. Por conta de uma agenda política mesquinha, as outras formas de morrer no Brasil foram praticamente esquecidas por mais de um ano. (Das dez principais causas de morte, metade delas se refere a doenças do aparelho cardiorrespiratório. Outras: demência, violência interpessoal, diabetes, acidentes de trânsito, doença renal crônica. Dados de 2016.)
A pandemia provocou em muita gente um estado de letargia e pânico infantil, uma espécie de morte em vida. O amadurecimento aponta para outro lado. A morte passa a ser vista como uma amiga que tomamos cuidado para que permaneça a distância. Mas que aceitamos quando for a hora do encontro e respeitamos pelas lições que nos dá. A consciência da inevitabilidade da morte nos dá a razão definitiva para valorizar cada um dos dias de vida que nos restam. Para fazer o que não foi feito, curtir o que foi adiado, focar o presente, aprender com o passado. Enquanto há tempo.
“Covardes morrem muitas vezes antes de sua morte”, escreveu William Shakespeare na sua peça Júlio César. “O valente só morre uma vez. De todas as coisas que já ouvi, a mais estranha é saber que os homens a temem, visto que a morte, um fim necessário, virá quando tiver de vir.” “O medo da morte se segue ao medo da vida”, completa Mark Twain. “Alguém que vive em sua plenitude está pronto a morrer a qualquer momento.”
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