Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

"O maior réveillon do mundo está na UTI. Que venha a cura",

 escreve Alexandre Borges

Nascido e criado em Copacabana, descobri a vida entre o Morro da Babilônia e o Oceano Atlântico, com suas avenidas barulhentas, confeitarias charmosas, padarias caóticas e botecos sujos que fazem dela um dos locais mais polifônicos que existem. A imagem que veremos hoje à noite, com a festa oficial cancelada, é uma síntese dolorosa de 2020 e um chamado à responsabilidade para o novo tempo que começa.


Passei quase todas as minhas comemorações de réveillon com os pés descalços em meio a milhões de turistas vestidos de branco na areia gelada de Copacabana, entre fogos de artifício e barraqueiros que fazem seus cercados ilegais na praia, ambulantes com isopor e o lixo que insiste em ser lançado nas calçadas. Um ritual de início de ano poucas vezes interrompido e, quase sempre, contra a minha vontade. Já disse, irresponsavelmente, que um ano novo só pode começar se for recebido em Copacabana. Que Deus não ouça.


O bairro, nas últimas décadas, já não tinha nada de princesinha do mar. Refúgio dos idosos que alimentam pombos e jogam dama no Posto 6, do nascimento da Bossa Nova (desculpe, Ipanema), dos 18 revolucionários do Forte, do Copacabana Palace, o edifício mais bonito do Brasil, dos turistas bêbados de camisa florida abraçados com mulatas na Prado Júnior, dos anônimos e inacreditáveis escultores na areia, dos judeus do CIB e dos nordestinos da Serzedelo Corrêa, da molecada livre e solta do Chapéu Mangueira, da classe média aposentada que trocou a missa do domingo pelo chope da tarde de segunda. Um pouco de tudo, um buffet-degustação da humanidade.


Não existe consenso sobre a origem do nome do bairro, mas a hipótese mais aceita é que, em algum momento do séc. XVI, um dos contrabandistas que faziam a rota Brasil-Peru trouxe uma imagem de "Nossa Senhora de Kopa Kawana”, referência ao deus inca homônimo, uma síntese perfeita do sincretismo religioso dos cristãos que pulam as sete ondas e jogam flores para Iemanjá nesta noite.


No último dia da desastrosa gestão Marcelo Crivella, milhares de vagas de estacionamento no bairro foram suspensas, a queima de fogos proibida e grande parte do transporte público, vans e ônibus de turismo, impedidos de entrar. Os milhões de forasteiros que todo 31 de dezembro prestigiam Copacabana não são bem vindos em 2020.


A última noite do ano da pandemia colocou a mais famosa comemoração de réveillon do país na UTI. A decisão, inédita e extrema, é o certo a fazer, e o sacrifício do setor hoteleiro e quiosqueiros, dos vendedores de cerveja, das floristas e dos motoristas de peruas, dos mendigos e organizadores de eventos, não pode ser em vão. A cidade vai pagar um preço alto por muita irresponsabilidade que não é culpada, mas que sirva de lição para quem acha que um país se administra com bravatas.


Vamos receber 2021 como vivemos este ano, em casa. Uma prisão domiciliar sem direito a recurso e com uma única instância de apelo, que não é deste mundo. E é de lá que virá o consolo: “aceitaremos o bem dado por Deus, e não o mal?" (Jó 2,10).


A vida de Jó, uma festa de riqueza, paz e felicidade, foi também cancelada sem que ele fosse culpado, muito pelo contrário. Seus amigos e sua esposa tentaram que ele se voltasse contra a fortuna e contra Deus, mas não conseguiram. Jó resistiu às mais extremas privações e, com fé inabalável, foi recompensado ao final. Um recado de mais de três mil anos que nunca perdeu a atualidade.


No Eclesiastes, outra lembrança eterna: “para tudo há uma ocasião, e um tempo para cada propósito debaixo do céu”. Que esta noite seja a última deste tempo de tantos sacrifícios, perdas e dores. Que a festa cancelada seja a chance de arrumar a casa para o novo, com mais responsabilidade, prudência e maturidade. Estamos todos juntos nessa e, cuidando uns dos outros, ressurgiremos. 2020 foi uma doença, mas tem cura. Ela se chama 2021.


Feliz Ano Novo!


Gazeta do Povo


















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