por Guilherme Fiuza
Tem certas horas que é melhor falar de culinária. Vai aqui então uma receita da vovó para adoçar um pouco mais a sua quarentena vip.
Pegue uma lata de leite condensado e derrame três quartos dela no seu cérebro. Espere o tempo necessário até sentir que a sua honestidade intelectual esteja 100% embotada. Se tiver dúvidas, consulte o site do Butantã. Depois mexa bem até que todos os seus neurônios passem a chamar urubu de meu louro e egoísmo de empatia.
Concluída essa etapa, pegue o conteúdo restante da lata de leite condensado (um quarto) e derrame nos seus olhos, para não correr o risco de se olhar no espelho. (Nota da vovó: alguns preferem realizar essa parte da receita jogando fora os espelhos de casa. É válido, mas nem sempre se chega ao ponto certo, porque às vezes uma porta de vidro ou mesmo uma tela apagada podem súbita e inadvertidamente mostrar a você a sua própria cara).
Com seu cérebro embotado e seus olhos melecados, pare um pouco de salvar a vida de ninguém pelo zoom (você merece um descanso) e pegue uma panela vazia. Não ponha nada dentro dela, porque, como já dizia vovó, panela em quarentena vip é tamborim. Agora apanhe uma colher, vá para a janela do seu belo apartamento e plec-plec-plec-plec! Assim você estará denunciando o escândalo do Leite Moça que destrói o país e põe vidas em risco, conforme você leu nas melhores fake news de grife.
Aproveite que o mundo está olhando para o seu heroísmo e faça o V da vitória e da vacina. Peça à equipe científica do Butantã para te explicar que o V se faz com dois dedos. Mas se a vacina for meia-boca, como é a sua, pode fazer com um dedo só. Preferencialmente use o dedo do meio, em homenagem às cobaias que estão pagando o experimento dos laboratórios bilionários.
Você está fazendo história com o Sarney, o Dória, o FHC e o Temer – todos recomendando uma vacina que não tem estudo suficiente para idosos, mas tudo bem porque ali ninguém é idoso. Só vaidoso. Vá, idoso! Pra onde? Procura na receita da vovó.
Agora que o seu spa está mais doce do que nunca, pegue o seu deleite condensado, misture com o seu espírito de porco e saia gritando “fique em casa”. Pode ficar tranquilo porque com o seu cérebro embotado e seus olhos grudados de Leite Moça você não vai enxergar os ônibus lotados, nem os idosos na periferia aglomerados em casa com os jovens que vieram dos ônibus lotados. Você só vai ouvir a suave cantilena da Lady Gaga te dizendo que está tudo bem na quarentena vip e o vírus está desolado do lado de fora. O corona só pega negacionista e quem não tem avião pra seguir a ciência até Miami.
Ingrediente final para o seu delicioso brigadeiro ético: pegue um laudo de eficácia do lockdown (você encontra em qualquer camelô chinês) e entregue às pessoas que estão adoecendo em casa, sem liberdade e sem emprego. Mande por motoboy, porque o que você ouviria se saísse do zoom não pode ser publicado numa coluna de culinária.
Gazeta do Povo
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2021/01/a-etica-dos-condensados-por-guilherme.html
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