por Vilma Gryzinski
Para deixar tudo claro desde o início: não estamos falando de golpes, habitualmente desfechados por tropas armadas, mas sim de manifestações populares que escapam ao controle.
E mais: o Conselho Legislativo de Hong Kong não é um órgão democrático eleito pelo voto direto como os parlamentos convencionais.
Não é nem nunca será. A China jamais permitirá que isso aconteça.
Metade de seus integrantes são indicados por associações profissionais totalmente no bolso de Beijing.
Mesmo os representantes escolhidos por voto podem ser expulsos, como aconteceu com dois jovens líderes do movimento Younginspiration, conhecido pelos guarda-chuvas usados nos protestos.
Eles foram eleitos e, na posse, gritaram o slogan separatista: “Hong Kong não é a China”.
Um anátema para o regime comunista chinês, repetido nas pichações feitas pelos manifestantes que arrebentaram os vidros do complexo onde fica o Conselho Legislativo, quebraram móveis e rabiscaram as paredes.
Até a flor que simboliza Hong Kong, a bauhinia, um tipo de para-de-vaca em trepadeira, foi pichada. Motivo: fica contra um fundo vermelho, representando o poder da China.
Pelos padrões de Hong Kong, onde se misturam o sistema de ordem da época do colonialismo britânico e o modelo chinês de controlado comportamento social, foi uma agressão violentíssima.
Pelo padrão black bloc, conhecido no Brasil e em outros países, os manifestantes chineses, com seus guarda-chuvas e capacetes amarelos de obra, pareciam meninos bem comportados.
Daqueles que exageram um pouco na hora de expressar frustração, digamos, com um legislativo que queria aprovar a extradição de presos políticos locais para serem julgados na China, com resultados nada difíceis de imaginar.
Note-se que falamos de China e Hong Kong como se fossem dois países separados. Mas desde a devolução da ex-colônia, em 1997, são, teoricamente, a mesma entidade.
Um país, dois sistemas é o lema dessa reunificação, com a ideia de que as liberdades existentes no pequeno, superlotado e rito enclave – reunião, imprensa, expressão, além de judiciário independente e, eventualmente, eleição direta para o chefe de governo – seriam mantidas.
“ESTADO DE DIREITO”
Os protestos iniciados há anos são provenientes da parte da população que acha que o sistema não só não vai ser mantido, como tende a piorar.
Outra parcela acha que está bom e é melhorar não provocar a China – o grande medo que paira desde domingo, quando os manifestantes entraram na área ao redor do Conselho Legislativo, conhecido como Legcon, e, no dia seguinte, invadiram o prédio.
Foi reveladora a expressão de cansaço e agonia de Carrie Lam, a executiva-chefe, como são chamados os chefes de governo de Hong Kong – escolhidos a partir de uma lista aprovada pela cúpula do Partido Comunista chinês – quando disse, numa entrevista às 4 horas da manhã, que não existe nada mais importante do que o “estado de direito”.
A manutenção da ordem e do “estado de direito” é obviamente a desculpa que o regime chinês vai usar para descer o relho – como, ainda está para ser visto.
Em regimes democráticos, obviamente, qualquer ato agressivo no parlamento é um ataque à própria democracia. Por mais vontade que muitos tenham de manifestar sua revolta contra representantes que não representam o povo, muito ao contrário.
Historicamente, na maioria das vezes em que a massa expressa essa frustração, nada de bom vem disso.
Na Inglaterra do fim do século 18, já superado o pior das brigas político-religiosas entre protestantes e católicos (estes perderam), a onda de levantes populares chamada de Motins de Gordon levou uma massa de manifestantes à entrada do Parlamento no dia 2 de junho de 1780.
Levavam um abaixo assinado com grande adesão popular, exigindo que fossem cancelados os parcos direitos restaurados para os católicos, como o de servir no Exército – a mão de obra andava escassa com a rebelião na ainda colônia americana.
O tempo estava quente, o gin rolava em grandes quantidades e a coisa logo degenerou.
Primeiro, os membros da Câmara dos Comuns e da dos Lordes começaram a ser vaiados na medida em que chegavam.
“Não demorou para que as palavras agressivas dessem passagem a atos. A multidão começou a jogar lama e passou para os empurrões e até agressões aos legisladores”, descreve Antonia Fraser no livro The King and the Catholics.
Lorde Bathurst, que era conde e viria a ser o responsável pela segunda e derradeira prisão-exílio de Napoleão, levou um tapa na cara. O poderoso duque de Norththumberland “foi confundido com um jesuíta” – nem o papa era mais odiado do que os jesuítas pelos protestantes.
“Arrancaram o chapéu da cabeça do primeiro-ministro, lorde North, e depois os pedaços foram vendidos como souvenires por um shilling cada.”
O incidente virou menos do que um pé de página na história de Frederick North, o homem tão preocupado em recuperar as finanças pós-guerra (a dos Sete Anos) do reino que se recusou a abolir a tarifa sobre o chá destinado às colônias americanas.
Um pessoal de Boston não gostou, invadiu na calada da noite um navio inglês carregado com a mercadoria e jogou tudo no mar. Todo mundo sabe o que aconteceu depois.
Passar para a história como “o homem que perdeu a América” foi o carma de onde North. O que é perder um chapéu e levar uns safanões perto disso? Ou em comparação com as barbaridades perpetradas contra católicos, nacionais ou estrangeiros?
As multidões insufladas por George Gordon, filho de um duque escocês que virou fanático protestante, também invadiram uma prisão, soltaram os detentos e deixaram uma pichação: “Sua Majestade, Rei Turba”.
A expressão “King Mob” tornou-se sinônimo dos momentos de anomia social, quando a ordem desmorona e a turba malta toma conta.
AGENTES PROVOCADORES
No período das revoluções francesas que começou menos de uma década depois dos Motins de Gordon – devidamente, embora com relutância, controlados pela Cavalaria –, invadir o legislativo virou quase um esporte nacional.
As facções rivais na Convenção Nacional convocavam os sans cullotes e, mais cedo ou mais tarde, acabava todo mundo na guilhotina.
No momentoso ano de 1848, o ano das revoluções, a Assembleia Constituinte foi cercada por nada menos que 80 mil revoltosos, em pé de guerra.
O imperador Luís Napoleão já havia renunciado no começo do ano, a república sido reproclamada, e eleita uma Assembleia Constituinte de maioria mais conservadora do que os republicanos revolucionários gostariam.No meio da história, surgiu, no dia 15 de maio, uma manifestação em favor da Polônia, então sob ocupação da Prússia, rapidamente transformada em protesto descontrolado. Até hoje se discute o papel de possíveis agentes provocadores.
Da Bastilha, a turba foi para o Palácio Bourbon, a imponente construção em estilo greco-romano à margem esquerda do Sena. Depois da invasão, pacífica pelos padrões franceses, foi lido um abaixo-assinado em favor da Polônia livre e o líder da malta, Aloysius Huber, proclamou: “A Assembleia Constituinte está dissolvida”.
Não estava, evidentemente. A multidão foi embora, rumo ao Palais de Ville, a sede da prefeitura, onde instalou um “governo revolucionário”. A violência explodiu em junho, com as barricadas, a repressão, os rios de sangue dos dois lados e a derrota dos sublevados.
O oposto aconteceu com a Assembleia Constituinte de vida mais curta da história, a da Rússia pós-revolução de fevereiro. Reunida em 5 de janeiro de 1918, com 25% dos deputados pertencentes aos bolcheviques, não aceitou a exigência deles de reconhecer a autoridade dos sovietes, a forma de governo propalada por Lênin.
Sob boicote dos bolcheviques, a Constituinte acabou no dia seguinte.
O que vai acontecer em Hong Kong? Xi Jinping e a cúpula comunista estão diante de um dilema clássico: se a repressão for muito ostensiva, escangalham com a imagem que tentam construir para a China. Se não for, demonstram a pior das qualidades dos regimes de força, a fraqueza.
Para a opinião pública interna – que só começou hoje a ser informada dos acontecimentos em Hong Kong, até então sob censura total –, estão explorando a quebra da ordem. E, horror dos horrores, o reaparecimento da bandeira usada durante o período britânico.
Que a bandeira da era colonial vire símbolo de liberdade demonstra muito bem o que os manifestantes de Hong Kong acham do domínio chinês. E explica o recurso extremo ao quebra-quebra no Conselho Legislativo.
Tem muita gente de alma lavada e não é só em Hong Kong.
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