por Vilma Gryzinski
Os vídeos liberados pelo governo iraniano são inacreditáveis. Forças especiais, de balaclava e gritando Allahu Akbar, descem de rapel de um helicóptero e tomam o alvo.
Apesar da encenação, não foi nenhum ato heroico. Os comandos da Guarda Revolucionária Islâmica tomaram um navio comercial, o petroleiro Stena Impero, sem proteção nem defesa.
Os momentos dramáticos foram registrados em conversas por rádio.
Impotente, à distância, o comandante de uma fragata de guerra da Marinha Real apela, educadamente ao oficial iraniano a bordo de uma das lanchas usadas para o ato de pirataria: “Por favor, confirmem que não pretendem infringir a lei internacional e abordar ilegalmente o MV Stena Impero”.
Todos os sistemas de localização do petroleiro foram desligados minutos depois. Um segundo navio sob bandeira britânica foi desviado praticamente ao mesmo tempo.
Os tripulantes estavam “bem”, informou o regime iraniano.
Só poderiam estar. O objetivo do regime é esticar mais um pouco a corda já altamente tensionada que mantém o estado de alta ansiedade no Golfo Pérsico, o ponto fulcral do trânsito marítimo de petróleo.
Quem não tem um futuro nada brilhante são os 17 “espiões da CIA”, iranianos que trabalhavam em setores militares e foram presos sob a acusação de passar informações para o inimigo. Alguns já foram condenados a pena de morte.
Acuados pelas sanções que o governo Trump aumentou depois de tirar os Estados Unidos do acordo nuclear, os iranianos querem mostrar que seus oponentes também terão que pagar um preço.
Como bons e ousados jogadores, escolheram o momento certo para atacar os ingleses: a transição entra o desmilinguido governo de Theresa May e a ascensão de seu substituto, Boris Johnson, a ser formalizada amanhã.
May nem estava mais indo a Downing Street, o chanceler Jeremy Hunt estava em campanha na tentativa de ganhar de Boris a liderança do Partido Conservador e do governo e até a estrutura permanente de defesa refletia os sinais inevitáveis da falta de liderança.
Os principais integrantes do governo que sai têm horror agora pouco disfarçado ao governo Trump e recusaram a proposta americana de fazer um esquema conjunto de proteção ao trânsito dos petroleiros que garantem o funcionamento de metade do mundo.
Ferraram-se. As decisões frouxas ou erradas redundaram em humilhação nacional: não foi a bandeira de May ou de Hunt a baixada nos navios pirateados, substituída pela do Irã, mas a do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.
Depois que acontece, não dá para fingir engrossar o tom como fez Hunt, falar em sanções e outros blablablás.
Ou tentavam recuperar os navios na marra – o que o Reino hoje não tem condições de fazer, ainda mais considerando-se que deflagraria uma guerra – ou ficavam esperando o Irã magnanimamente liberar os petroleiros.
COSTA DOS PIRATAS
Durante 150 anos, desde 1820 até o fim dos últimos resquícios coloniais, em 1971, a Grã-Bretanha dominou o golfo, o gargalo marítimo onde ficam os países árabes hoje independentes, convivendo desarmoniosamente com o Irã, então chamado Pérsia.
Mesmo antes que a fabulosa quantidade de petróleo da região começasse a jorrar, a posição estratégica para a navegação já provocava encrencas.
Costa dos Piratas era como os ingleses chamavam a faixa litorânea. A tribo Qassami controlava o Estreito de Hormuz, cobrando pedágio para a travessia. Também pirateava um navio aqui e outro ali.
Entre 1815 e 1816, os tripulantes indianos de três navios do Império, com bandeira britânica, foram massacrados.
As tribos árabes não reconheciam os “idólatras” seguidores do hinduísmo como súditos do trono britânico e reservavam a eles o castigo previsto para quem não fosse das religiões monoteístas.
Uma força-tarefa da Marinha Real, com ingleses, sepaios indianos e aliados locais, detonou, literalmente, a cidade costeira de Ras Al Khaimah.
Os Qassimi sofreram cerca de mil baixas, contra quatro do lado dos ingleses. Hoje Ras Al Khaimah é um dos sete milionários integrantes dos Emirados Árabes Unidos.
O poderio imperial era exercido através do Residente Político, um emissário baseado na Pérsia. A derrocada do Império Otomano, no começo do século XX, valeu muitas décadas extras de presença britânica nos protetorados do Golfo.
Os antigos protegidos, bilionários mas populacionalmente insignificantes, hoje esperam dos Estados Unidos o escudo para as ambições dos eternos rivais persas.
Donald Trump segue uma política que tem um padrão, embora seus opositores internos e externos digam que não: morde e assopra.
Quer forçar assim uma renegociação do acordo nuclear, com mais garantias de que o regime islâmico não possa retomar o programa bélico.
As outras potências envolvidas no acordo não o abandonaram, submetendo-se à chantagem iraniana de aumentar a quantidade e o grau de urânio enriquecido.
Com a agressão iraniana aos dois petroleiros de bandeira britânica, os outros países europeus precisam se decidir: aceitam a agressão, na categoria de ato de guerra, ou descem do muro.
Usar navios-tanque como alvos foi uma das muitas barbaridades ocorridas quando Irã e Iraque – este na condição de iniciador – travaram uma guerra pavorosa de 1980 a 1988.
Num de seus fenomenais erros de cálculo, Saddam Hussein esperava que o Irã retaliasse aos ataques contra seus petroleiros fechando o Estreito de Ormuz e assim provocar a intervenção direta dos Estados Unidos.
O Irã estava fraco, ainda sob o efeito do caos da revolução islâmica, havia um enorme apoio internacional assumido ou implícito ao Iraque. Resistiu a um custo enorme em vidas.
O mesmo regime que foi tão brutalmente atacado organizou uma rede clandestina de terrorismo, principalmente através de suas criaturas, os xiitas libaneses do Hezbolá.
SOLO CONSPURCADO
Os crimes na sua conta vão desde as inúmeras intervenções no Líbano até o atentado contra a Amia, a associação judaica na Argentina – acabam de ser completados os 25 anos da atrocidade.
Diretamente ou por seus intermediários, o Irã matou muitos americanos no Iraque, interferiu brutalmente para manter o regime sírio e detonou todas os caminhos para um entendimento entre Israel e palestinos.
Agora, chantageia o mundo com o programa nuclear e sequestra petroleiros. Conta com as fragilidades políticas dos adversários.
Donald Trump, já mergulhado na campanha pela reeleição, não pode restaurar uma presença militar maciça no Oriente Médio sem um grave prejuízo político.
Vai fazendo a conta gotas. Primeiro, mais mil soldados no Iraque; agora, 500 para a Arábia Saudita.
Só para lembrar: o motivo principal alegado por um certo saudita chamado Osama Bin Laden para colocar a Al Qaeda em pé de guerra depois da saída russa do Afeganistão foi a presença de militares americanos “conspurcando” o solo onde nasceu o Islã.
O fato de que estavam salvando a Arábia Saudita – e todo seu petróleo – de cair nas mãos do Iraque não contou.
Israel também está em tensão pré-eleitoral e na Grã-Bretanha o novo primeiro-ministro assumirá em condições nada tranquilas.
Boris Johnson, sob pressão contraditória do eleitorado conservador e do establishment apavorado, tem que cumprir a promessa de fazer o Brexit até 31 de outubro ou sucumbir logo no começo. Agora, tem a encrenca de dois petroleiros sequestrados. E ainda precisa administrar como a namorada vai se instalar no número 10 da Downing Street com o menor escarcéu possível.
Os radicais do regime iraniano estão comemorando. Mostraram a impotência do antigo império, assustaram todo mundo que precisa do petróleo do Golfo e ainda vão ter uns enforcamentos celebratórios para intimidar a massa.
É aí, claro, que mora o perigo.
Um regime iraniano triunfante não vai ficar calminho, contando as vitórias. Nem Trump vai deixar que fique.
Tendo cancelado um ataque retaliatório, ele não pode dar uma segunda demonstração de fraqueza. Já viu qual foi o resultado da primeira.
Veja
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