por Géssica Hellmann.
*Em Educação Clássica, Valorizando o conhecimento, por Géssica Hellmann
A palavra mais fortemente associada à ideia de Educação Clássica na atualidade é “trivium”, um termo latino que significa em Português “Três Vias”. A ideia do trivium foi concebida na Idade Média para englobar as três primeiras das assim chamadas Artes Liberais: a Gramática, a Lógica e a Retórica. A Educação Clássica (As Artes Liberais) tem por objetivo promover o amor pelo Bem, pelo Verdadeiro e pelo Belo. O “Trivium é a porta para o conhecimento, o verdadeiro manual de instruções da mente, são os alicerces para empreendermos a incursão nos vastos campos do saber e do conhecimento”.
Em 1947, Dorothy Sayers, em seu ensaio intitulado “As ferramentas perdidas da aprendizagem”, enfatizou os problemas da Educação moderna e seu efeitos culturais sobre o ocidente, resultando em crescente impotência intelectual. A autora defende a tese de que os modelos modernos de Educação conduziram ao abandono das ferramentas essenciais para pensar e aprender por conta própria, sugerindo que a solução era recuperar os princípios da Educação Clássica tal como eram aplicados na Idade Média sem, obviamente, deixar de lado todo o conhecimento acumulado pela Humanidade até os dias de hoje. Essa ideia é o nosso ponto de partida a para defendermos a tese de que o segundo benefício fundamental da Educação Clássica é que ela fornece aos estudantes as ferramentas que os habilitarão a tornar-se seus próprios professores ao longo de suas vidas.
Embora o trivium seja popularmente associado, inclusive por diversos autores influentes como Susan Wise Bauer, à periodização cronológica do ensino de crianças e jovens em “fases” – “fase Gramatical”, de 7 a 10 anos de idade; “fase Lógica”, de 11 a 14; e “fase Retórica”, de 15 a 17 – é fato que a ideia do Trivium é muito mais ampla, referindo-se a fases essenciais de todo processo de aprendizagem, pouco importando a idade em que o indivíduo o inicie, nem o quão avançado seja o conhecimento que deseja adquirir.
Ao ler a explicação que se segue, tenha em mente que as Artes do Trivium possuem uma amplitude muito maior do que esse “esquema de divisão em fases”. Para entender todos os aspectos que envolvem as Artes da Gramática, da Lógica e da Retórica recomendamos o estudo de algumas obras essenciais como: “Didascalicon” de Hugo de São Vitor, “Trivium” da Irmã Miriam Joseph, “The Latin-Centered Curriculum: A Home Schooler’s Guide to the Classical Curriculum” de Andrew A. Campbell e finalmente a “História da Educação na Idade Média” por Ruy Afonso da Costa Nunes.
Fase Gramatical – A memorização dos fatos
Seja qual for o assunto que você deseje aprender, o primeiro estágio será, sempre, a memorização dos fatos e conceitos fundamentais do campo de conhecimento. Uma criança que esteja se aventurando pela primeira vez no estudo da Matemática memorizará o nome, a forma e o traçado dos algarismos, as quantidades que eles representam, associando cada um daqueles nomes, formas e traçados à quantidade dedinhos de sua mão ou a grãozinhos de feijão postos sobre a mesa de estudos. Um jovem aprendiz de fotografia deverá memorizar pelo menos alguns fatos essenciais: os nomes das partes da câmera, o papel da abertura da objetiva e da velocidade de exposição, a noção de distância focal, os tipos de luz e os métodos de fotometria, os diferentes tipos de tema, as técnicas de enquadramento, entre muitos outros conhecimentos básicos sem os quais é impossível produzir uma foto de qualidade aceitável. Um estudante de Medicina adulto começará seus estudos memorizando milhares de nomes exóticos para cada uma das partes identificáveis da anatomia humana. Seja qual for o campo de estudos, do mais elementar ao mais avançado, o primeiro passo é, invariavelmente, a memorização de fatos.
Toda a propaganda difamatória do papel da memorização no ensino – entre nós brasileiros pejorativamente chamada de “decoreba” – não muda o fato de que saber é ter a informação disponível na memória no momento em que você precisa dela. No mínimo, mesmo que você, em certo momento, não tenha uma lembrança exata, você precisa ter disponível em sua memória a informação preliminar de que (1) a informação desejada existe e (2) que ela pode ser encontrada em tal ou qual livro, artigo científico, banco de dados, website ou outra fonte qualquer.
Se você não tiver nem mesmo essas duas informações preliminares, não poderá dizer que realmente aprendeu, que efetivamente sabe ou conhece alguma coisa. Ninguém pode se dizer um “profissional” de uma área de conhecimento se não reduzir ao mínimo a necessidade de consultas externas aos conceitos fundamentais de sua profissão pois esse título é reservado às pessoas que os têm disponíveis imediatamente em sua própria memória!
A crítica mais frequente à memorização ou decoreba pode ser sintetizada no seguinte: “Não adianta memorizar uma montanha de informação e não entender o que ela significa, e não saber o que fazer com ela”. Sim, de fato, essa crítica está correta. O problema é que a Educação Clássica não se esgota na memorização de fatos, mas entende-a como uma fase, uma etapa, um estágio do conhecimento. A memorização é apenas o primeiro degrau necessário ao entendimento. Ou será possível entender algo que não está disponível em sua memória? O segundo degrau do entendimento é o que chamamos de fase Lógica.
Fase Lógica – O relacionamento entre os fatos
Após memorizar os fatos essenciais sobre uma área de conhecimento, dá início ao estabelecimento de relações entre esses fatos. A criança que já aprendeu os números começa a relacioná-los logicamente, efetuando operações de adição e subtração para resolver os primeiros probleminhas, e descobre quantas balas restam num pote após distribuir algumas para seus irmãos. O jovem aprendiz de fotógrafo que já conhece as partes da câmera e os princípios fundamentais de fotografia faz experiências combinando essas informações e compara o resultado obtido com o que desejava inicialmente e entende o que precisa mudar para aproximar-se cada vez mais do resultado desejado. O estudante de Medicina que já memorizou os nomes de todas as partes da anatomia humana começa a aprofundar-se no modo como essas partes interagem para produzir todas as maravilhas – e os problemas – do funcionamento do corpo humano.
Ora, a Ciência do relacionamento entre informações chama-se Lógica. É recorrendo à Lógica que o estudante consegue perceber se uma afirmação sobre um fato é, ao menos provavelmente, verdadeira ou falsa. É a Lógica que possibilita ao estudante aceitar ou descartar uma afirmação, uma ideia, uma proposta. É também com recurso à Lógica que o estudante pode perceber e formular problemas práticos ou teóricos, bem como imaginar soluções para esses problemas e julgar se essa solução tem ou não alguma probabilidade de produzir o efeito desejado quando posta em prática.
A simples manifestação de “opiniões” sem fundamento em fatos memorizados e na análise Lógica do relacionamento entre esses fatos resulta na pseudoargumentação vazia e inútil que todos testemunhamos nas salas de aulas de escolas e faculdades no Brasil das últimas décadas. O resultado é um estudante inseguro quanto aos próprios conhecimentos que busca na atitude de arrogância palpiteira e no discurso ideológico “pronto para consumo” sob a forma de slogans de propaganda partidária um refúgio para a própria incapacidade de raciocínio. Sob essa casca de falso “empoderamento”, encontramos um indivíduo intelectualmente fragilizado por distorções impostas pelo sistema de ensino, facilmente manipulável por todo tipo de gente desonesta. Esse é exatamente o resultado oposto ao obtido pela Educação Clássica, dada a sua ênfase na memorização e no relacionamento Lógico dos fatos.
Conforme o estudante progride em sua capacidade de relacionar os fatos, ele se dirige cada vez mais rumo à elaboração de conexões cada vez mais complexas e originais, que resultam em ideias próprias que não são simples “palpites”, mas autênticas opiniões dignas de uma discussão pública em alto nível. Essas ideias originais exigem uma forma de expressão mais elevada, com forte ênfase na precisão do vocabulário, na lógica da argumentação e na beleza da apresentação para que sua mensagem seja valorizada por todos os que a receberem. Isso nos leva ao terceiro estágio do trivium, a fase Retórica.
Fase Retórica – A expressão magistral das ideias sobre os fatos
Chega um momento em que todo estudante, já tendo explorado logicamente todas as principais conexões entre os fatos, torna-se capaz de elaborá-los intelectualmente sob a forma do que se convencionou chamar, no ambiente universitário, de um “produto”. Por exemplo, aquela criança que estudava Matemática é capaz de criar cartazes em cartolina para uma feirinha de Matemática onde explicará as propriedades da adição ou o funcionamento de um ábaco. Aquele jovem aprendiz de fotografia poderá produzir seu primeiro “ensaio fotográfico” em que expressará seu olhar original sobre um tema à sua escolha. Aquele estudante de Medicina poderá redigir monografias, artigos científicos, teses de mestrado ou doutorado e apresentar os resultados de suas pesquisas em Congressos.
Mais do que uma capacidade, a expressão oral e escrita de ideias longamente elaboradas após anos de estudos é uma necessidade pessoal e um dever de todo cidadão. O ser humano é ávido por dizer o que pensa, por comunicar – isto é, tornar patrimônio comum – suas ideias, descobertas, invenções e criações. É essa avidez de comunicação que permite à Humanidade evoluir constantemente no seu conhecimento sobre o mundo, representando a mais importante herança que cada um de nós pode transmitir às futuras gerações.
A Retórica é a Ciência própria da comunicação humana. O estudante que atinge a fase Retórica aprenderá os meios de expressão mais elevados para que suas ideias provoquem impacto sobre o público e encontrem eco na comunidade científica ou profissional de que venha a participar. O objetivo é tornar-se apto a liderar intelectualmente o seu campo de atuação, seja ele qual for, exercendo influência ampla e duradoura sobre muitas gerações.
Ao domínio da arte da Retórica, o estudante estará pronto para dedicar-se a explorar e a expandir as fronteiras do conhecimento em seu campo de atuação, seja nas Artes, nas Ciências, na Filosofia ou na Religião, pois ele terá realizado aquele que deveria ser o objetivo final de toda Educação: a independência intelectual.
A Educação Clássica é o caminho para a Independência Intelectual
Se a palavra “trivium” significa “três vias”, é porque devemos entender esta primeira etapa da Educação como uma jornada rumo à independência intelectual. Em síntese, adquirir independência intelectual significa “aprender a aprender”, libertando-se da dependência de “cursos”, “métodos” e “instrutores” para adquirir os conhecimentos que se deseja. Uma vez que o cidadão tenha atravessado essas três estradas do conhecimento, ele poderá percorrê-las novamente quantas vezes quiser, com maior facilidade a cada vez, para dominar seja qual for o campo de conhecimento que deseje.
Sem dúvida, não estamos aqui advogando a ideia estapafúrdia de que os cursos seriam “desnecessários” ou “nocivos” à independência intelectual. Ao contrário, uma pessoa que tenha atingido o estágio superior da independência intelectual saberá definir com precisão quais conhecimentos lhe será conveniente adquirir por conta própria e quais outros deverá acessar com o auxílio da experiência e conhecimentos de um mentor, instrutor, professor ou treinador. Porém, mesmo nesses casos, ela não permanecerá ouvinte passiva de uma exposição oral, mas se esforçará para (1) relacionar seu conteúdo com os fatos de que tem notícia, (2) estabelecer conexões entre os fatos e as informações expostas pelo mestre e (3) elaborar pensamentos próprios e originais que expressará em linguagem dotada de brilho e competência argumentativa e persuasiva.
“Aprender a aprender” significa, portanto, assumir as rédeas da própria Educação, isto é, tornar-se capaz de conceber e executar com sucesso um plano de aprendizagem para si mesmo e para os seus filhos. A Educação Clássica, ao conduzi-lo por essa trajetória rumo à independência intelectual, deixando claro para o estudante, a cada passo, o significado do processo de aprendizagem, propicia essa independência e cumpre magistralmente, ao final de longos anos de estudo, o objetivo de transformar simples iniciantes em autênticos mestres capacitados a transmitir o que aprenderam às futuras gerações.
Índice de artigos desta série:
• Os oito benefícios fundamentais da Educação Clássica
• Benefícios da Educação Clássica (1) – Pertencimento
• Benefícios da Educação Clássica (2) – Independência Intelectual
• Benefícios da Educação Clássica (3) – Discernimento
• Os oito benefícios fundamentais da Educação Clássica
• Benefícios da Educação Clássica (1) – Pertencimento
• Benefícios da Educação Clássica (2) – Independência Intelectual
• Benefícios da Educação Clássica (3) – Discernimento
* Publicado originalmente em http://www.gehspace.com/arte-cultura/author/gessica-hellmann/
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