Trecho de uma ampla reportagem do jornal português Correio da Manhã
Por:José Carlos Marques
Mayara Vivan tem 23 anos e jura que não é líder de
nada. Nem ela nem a organização onde milita, o Movimento Passe Livre,
que luta pela melhoria dos transportes de São Paulo. Mas aquilo que
começou por ser um protesto por causa de um aumento de 20 cêntimos no
passe dos transportes da maior cidade da América Latina transformou-se
rapidamente no maior protesto de que há memória na história do Brasil.
Nas últimas três semanas, milhões de brasileiros
saíram às ruas para exigir mais educação, melhor saúde, o fim da
corrupção na política e mil e uma outra causas que vão sendo
acrescentadas dia após dia. Ninguém sabe que país vai emergir desta
crise, mas todos têm a certeza de uma coisa: o Brasil nunca mais será o
mesmo.
PROTESTO SEM LÍDERES
“O povo não precisa de liderança, toda a gente está a
sair à rua para mostrar a sua revolta. Nós tínhamos a ideia de que
iríamos fazer uma grande manifestação em São Paulo, mas não imaginámos
que os protestos iam ganhar esta dimensão”, conta à Domingo Mayara,
estudante de Geografia na Universidade de São Paulo. Catapultada para os
holofotes das televisões, Mayara tornou-se um dos rostos de uma geração
que o Brasil julgava adormecida, alienada da discussão política. Mas
afinal foram jovens como os que fazem o Movimento Passe Livre que
obrigaram a presidente Dilma Rousseff a vir ao seu encontro, para tentar
travar a onda de indignação. Gesto que não impressionou Mayara: “A
presidente Dilma reuniu-se connosco, mas nem sequer leu as nossas
propostas. Nem se pode dizer que houve um diálogo. Conseguimos travar o
aumento dos passes, mas a luta não fica por aqui. Queremos transportes
de tarifa zero.”
“Aquele Brasil da propaganda, em que estava tudo numa
boa, acabou. Esse mundo caiu e ninguém sabe o que vem a seguir”, diz
Marcos Villa, historiador de e sociólogo, de 58 anos. O professor da
Universidade Federal de São Carlos, em São Paulo, confessa a sua
surpresa com o momento que o país atravessa: “Imaginei que haveria
protestos em algumas cidades. Nunca esperei – nem eu, nem ninguém – que
as pessoas saíssem à rua em mais de 150 cidades, pelas mais variadas
razões. E isto sem haver uma direção partidária ou sindical. É uma coisa
única na história do Brasil.”
As manifestações têm sido marcadas por atos de
violência entre a polícias e manifestantes, mas as cargas policiais dos
primeiros dias têm sido refreadas. Continua a haver distúrbios e atos de
vandalismo, mas os próprios manifestantes têm-se empenhado nos apelos à
não violência e na denúncia da infiltração de grupos violentos nas
manifestações.
FUTEBOL NÃO ESCAPA
A hora deveria ser de festa. O Brasil recebe a Taça
das Confederações de futebol e estreia os estádios que vão receber o
próximo Mundial. Mas os gastos astronómicos com os estádios são
precisamente uma das causas que tem levado a indignação às ruas.
“Estima-se que terão sido gastos 33 mil milhões de reais [11 mil milhões
de euros]. Uma fortuna que poderia ter sido aplicada em hospitais e
escolas”, diz Marcos Villa.
As manifestações à porta dos estádios – e as
repetidas cenas de violência policial contra os manifestantes –
tornaram-se a imagem da Taça das Confederações. E até os próprios
jogadores da seleção exprimiram nas redes sociais o seu apoio a quem
protesta. Neymar, o grande astro da canarinha, escreveu no Instagram:
“Sempre tive fé de que não seria necessário chegarmos ao ponto de ‘ir
para as ruas’ para exigir melhores condições de transporte, saúde,
educação e segurança, isso tudo é OBRIGAÇÃO do governo (…) Também quero
um Brasil mais justo, mais seguro, mais saudável e mais HONESTO !!!!”.
David Luiz, central que jogou no Benfica, foi outra
voz incómoda para o poder: “As pessoas e os cidadãos tem o direito de
expressar as suas opiniões se não estão felizes. É só dessa forma que
podemos enxergar onde estão os erros para poder melhorar. O Brasil tem
tudo para crescer e ser melhor.” Questionado sobre as posições que os
seus atletas têm assumido, o selecionador Luiz Felipe Scolari mostra que
o balneário não é mouco aos gritos da multidão: “Esta possível
alienação que sempre é posta aos nossos atletas profissionais está
deixando de existir.”
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