Ainda é cedo, mas marinheiros treinados em perscrutar o horizonte,
instalados no cesto da gávea no maior mastro do navio, sondando as
proximidades do mês de agosto, data marcada para o julgamento do
processo do "mensalão" no Supremo Tribunal Federal (STF), já alardeiam
mar tranquilo à frente. Há pouco, uma reunião pouco republicana entre um
ex-presidente da República, um membro do STF e um ex-presidente dessa
alta Corte, influente homem público, no escritório desse último,
carregou os céus de nuvens sombrias, mas a sua rápida e surpreendente
dissipação só veio confirmar o diagnóstico de tempo benigno para os
navegantes. ...
A previsão não deixa de ser espantosa, vistas as coisas a partir do que
temos experimentado ao longo da nossa história. Desde sempre, como um
habitus entranhado na cultura nacional, estivemos obedientes a uma regra
não explícita que se traduziria no primado que as questões de conteúdo
deveriam exercer sobre as de forma. Tal habitus - para continuar
flertando com muita liberdade com categorias do sociólogo Pierre
Bourdieu - como que estaria inscrito em nosso próprio corpo, convertido,
pelo uso continuado, numa espécie de ideologia natural nascida das
próprias condições singulares em que se teria forjado o nosso
Estado-nação, em que teria cabido ao primeiro termo a criação demiúrgica
do segundo.
Essa particularíssima condição da nossa formação não escapou ao gênio
de Euclides da Cunha, que a ela atribuiu, em texto de À margem da
história, o caráter do excepcionalismo brasileiro, um país que teria
nascido a partir de uma teoria política a ser, gradual e paulatinamente,
internalizada pela sociedade em busca dos ideais civilizatórios do
Ocidente.
Na tradição dessa leitura, a construção da ordem no Estado nascente
seria uma criação dos juristas imperiais, magistrados que, encarnando os
desígnios das elites à testa do Estado, imporiam vertebração e o
sentimento de unidade a uma sociedade entregue às suas paixões e ao
particularismo dos potentados locais, tal como na demonstração clássica
de José Murilo de Carvalho. O conteúdo nos viria de cima e os
procedimentos formais, declarados no estatuto liberal que nos regia,
deveriam ser confrontados, de um lado, com o poder discricionário dos
governantes - o Direito Administrativo claramente hegemônico diante dos
demais ramos do Direito - e, de outro lado, com o poder de fato das
elites senhoras de terras e do sistema produtivo da época.
Sob esse duplo contingenciamento, os procedimentos e as formas próprias
ao estatuto político liberal deveriam ceder quando importassem ameaças
de lesões ao plano da ordem que se queria impor ou mesmo se viessem a
afetar interesses dos potentados locais em seus domínios patrimoniais.
Sem um Poder Judiciário autônomo diante do Poder Executivo e na ausência
de uma esfera pública, cuja formação efetiva somente vai germinar com
as lutas abolicionistas, a modelagem discricionária do Direito
Administrativo se vai comportar como o instrumento mais adequado para
que o conteúdo ideado pelo vértice político procurasse suas vias de
realização.
Essa dialética difícil entre forma e conteúdo se vai projetar no
cenário republicano, o Estado Novo tendo significado um momento de
exasperação da imposição do conteúdo sobre a forma, aí não mais
orientado pelos ideais civilizatórios, e, sim, pelos da modernização do
País. A Carta de 1937, em seu artigo 135, comanda sem subterfúgios que a
precedência "do pensamento dos interesses da Nação" deveria se impor
aos interesses individuais, cabendo ao Estado a leitura e vocalização
desse pensamento. Na fórmula, pois, o pensamento da Nação se
substantiva, enquanto os procedimentos para sua realização são meramente
instrumentais.
O curso do processo de modernização subsequente, em boa parte cumprido
em contexto mais amável às instituições do liberalismo político - salvo o
hiato do regime militar -, preservou essas marcas congênitas à nossa
formação, como no governo JK, em que se contornou o Poder Legislativo
com a criação dos então chamados grupos executivos, a fim de viabilizar,
pela ação discricionária da administração pública, seu programa de
metas para a aceleração da industrialização do País.
A Carta de 1988, ao instituir os termos da democracia política no País,
deu início a uma mutação em nossa vida republicana, ainda em andamento e
não de todo percebida, qual seja a que se expressa na tendência de
converter o constitucionalismo democrático em novo paradigma dominante
no sistema jurídico-político, afetando as antigas primazias exercidas
pelo Código Civil e o poder discricionário das esferas administrativas. A
emergência dessa tendência - escorada por institutos próprios, entre
outros, o Ministério Público, as ações civis públicas e as de controle
da constitucionalidade das leis - modera, quando não inibe, o
decisionismo de nossa tradição política.
Pode-se entender o assim chamado processo do "mensalão" como uma
tentativa de reação anacrônica do conteúdo contra a forma, pois o que,
na verdade, se intentava, embora por métodos nada republicanos, era
insular a vontade política dos governantes, no suposto de que somente
deles provinha a melhor interpretação dos interesses da Nação. A
tentativa se frustrou, foi criminalizada e, agora, chega aos tribunais.
Quanto à sorte do seu julgamento, a essa altura se trata de questão
menor, confinada às artes dos especialistas em técnica jurídica, uma vez
que, no que importa, a sociedade e suas instituições já demonstraram
recusar aos governantes o monopólio para decidir sobre quais são os
verdadeiros interesses da Nação. No mais, é como se dizia antes da
invenção da ultrassonografia: nunca se sabe o que vai sair de barriga de
mulher ou da cabeça de um juiz.
* Luiz Werneck Vianna, professor-pesquisador da Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio.
Fonte: Estadão - 24/06/2012
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