Judiciário em Foco
Sob a alcunha habitual de “quarto poder”, a imprensa desempenha papel essencial na fiscalização dos três braços estatais, investigando e escancarando os abusos de autoridades, e exercendo, sobre elas, uma legítima pressão, fora do alcance de indivíduos anônimos. Não à toa, a Constituição vigente, egressa de uma ditadura fardada, contempla, em seu artigo 220, a proteção à manifestação do pensamento, que, de tão irrestrita, não pode ser tolhida nem mesmo pela legislação. Dessa feita, muito menos pode ser sujeita a condições impostas pelo desejo de togados.
Na semana passada, a pedido da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (“Abraji”), o STF supriu lacunas e omissões em seu julgado de 2023, comentado neste espaço, em que a corte havia decidido responsabilizar meios de comunicação por falas de entrevistados. Em seus esclarecimentos recentes, o tribunal proclamou a seguinte tese: (i) em caso de entrevista na qual o entrevistado atribuir a prática de crime a terceiro, o veículo responderá se for demonstrado seu conhecimento prévio sobre a falsidade da informação ou se tiver negligenciado a apuração do fato; (ii) em entrevista ao vivo, o veículo não responderá, desde que assegure o direito de resposta ao ofendido; e (iii) constatada a falsidade da informação, caberá ao veículo remover o conteúdo, seja por iniciativa própria ou por notificação do ofendido, sob pena de responsabilização. A emenda saiu bem pior que o soneto.
A responsabilidade civil decorre de obrigações assumidas em contrato, ou da prática de atos ilícitos. Por sua vez, atos ilícitos são descritos, pelo Código Civil, como sendo condutas daqueles que, por negligência ou imprudência, causem danos a outrem ou que, no exercício de um direito, excedam os limites impostos por sua finalidade econômica ou social, pela boa fé ou pelos bons costumes.
Portanto, se determinada fala de um entrevistado vier a prejudicar terceiros e se estes comprovarem, em juízo, o nexo de causalidade direta entre a matéria jornalística e os danos alegados, poderá ser configurada a obrigação de indenizar, a ser arcada pelos indivíduos envolvidos. Para evitar, desde já, quaisquer interpretações falaciosas, quando a lei civil trata de dano, ela não abrange o subjetivismo de conceitos tão indefinidos e elásticos quanto os do binômio “mentira/verdade”. Ao contrário, a reparação aludida pela legislação consiste na justa compensação por prejuízos concretos, sejam eles de caráter patrimonial (tais como perda de contratos ou de oportunidades em geral), sejam de ordem moral (como, por exemplo, a dor da perda de ente querido, o sofrimento por uma lesão corporal ou a humilhação por uma imagem pública denegrida).
Quanto ao veículo em si, pessoa jurídica distinta dos indivíduos entrevistados, poderia ser responsabilizado, independentemente de prova de culpa, se a lei assim o determinasse. A propósito, o Código Civil elenca casos de responsabilidade por fato de outrem, como, por exemplo, a dos pais pelas condutas de filhos menores sob sua autoridade ou a dos donos de hotéis por atos de seus hóspedes. Diante da inexistência de leis que imponham aos veículos a obrigação de ressarcir eventuais danos causados por entrevistados a terceiros, o julgado supremo não passa de palavrório de togados legislando sem representatividade popular nas urnas.
A outra hipótese de responsabilidade sem demonstração de culpa reside nas situações em que a atividade habitual do autor do dano implique risco por sua natureza, como são os casos, por exemplo, da mineração ou da radiação. Como, até onde se saiba, a obtenção e disseminação de notícias não envolvem a iminência de sinistros com explosivos ou dejetos radioativos, tampouco se poderia responsabilizar objetivamente os veículos midiáticos por manifestações de entrevistados, a partir da chamada teoria do risco.
Por último, e não menos importante, o dispositivo final da tese suprema afronta também o Marco Civil da Internet. Afinal, se o artigo 19 do MCI condiciona o surgimento da responsabilidade de plataformas digitais à emissão de uma ordem judicial específica, e se o artigo 21 da mesma lei só determina a remoção a pedido dos interessados nos casos excepcionais de materiais contendo cenas de nudez e atos sexuais, não pode uma canetada togada forçar os veículos à exclusão de quaisquer materiais após mera notificação!
Portanto, essa nova decisão, à margem da Constituição e da legislação, trará ondas ainda mais revoltas ao oceano de insegurança jurídica já instaurada nos últimos anos. Ora, ao “legislar” para ensejar uma responsabilização em casos de conhecimento prévio, por parte do veículo, sobre uma pseudo-falsidade da informação fornecida pelo entrevistado, o STF torna a deixar em aberto as mesmas perguntas cruciais: no universo de notícias sobre fatos sujeitos às mais diversas interpretações, quais delas virão a ser consideradas “falsas”, com base em quais critérios e por quem? Considerando que o tribunal, em extrapolação a todas as suas atribuições constitucionais e legais, vem assumindo postura política para a divulgação de suas próprias “verdades” (inclusive via recursos propagandísticos!), qual será o destino de veículos que vierem a entrevistar indivíduos não exatamente alinhados às narrativas oficiais?
Convido você, caro leitor, a hipotetizar o porvir de uma mídia que exponha entrevistas com certos juristas, nas quais esses operadores do direito acusem togados de práticas delitivas, tais como prevaricação e abuso de autoridade, em virtude da prisão e condenação de uma cabeleireira por um certo “golpe de estado” com batom. Se a tal mídia insistir em ouvir os mesmos doutores, e se estes imputarem crime de responsabilidade a magistrados à frente de casos em relação aos quais forem impedidos e/ou suspeitos? O que ocorrerá se o veículo, de tão teimoso, consultar causídicos que acusarem togados de coação contra colaborador cuja delação seguir fundamentando diversas ações penais?
Desde a instauração do inconstitucional e ilegal Inquérito das Fake News, a retórica togada vem distorcendo dispositivos literais de normas jurídicas com o intuito nada meritório de fazer prevalecerem os anseios e a cosmovisão de figurões. Enquanto houver um único veículo midiático disposto a ouvir opiniões diversas, sem intenção de agradar ou receio de desagradar togados, ainda poderemos aspirar a algum laivo de liberdade. Se a mídia em bloco tremer de medo só de cogitar a possibilidade de que algum entrevistado afirme que “a grama é verde”, aí sim terá sido aberta a porta do inferno, sem esperança de saída.
Judiciário em Foco
Katia Magalhães é advogada formada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), e MBA em Direito da Concorrência e do Consumidor pela FGV-RJ, atuante nas áreas de propriedade intelectual e seguros, autora da Atualização do Tomo XVII do “Tratado de Direito Privado” de Pontes de Miranda, e criadora e realizadora do Canal Katia Magalhães Chá com Debate no YouTube.
publicadaemhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/liberdade-de-imprensa-a-pedra-no-sapato-de-togados-despoticos/
0 comments:
Postar um comentário