Jornalista Andrade Junior

quinta-feira, 10 de abril de 2025

Restaurando a Constituição de 1988: como a lei que governa os governantes

 Lexum 


A Constituição não é a lei que governa o povo. Ela é a lei que governa aqueles que nos governam. Essa frase, repetida em diferentes contextos por Randy Barnett, sintetiza mais do que uma visão originalista da Constituição — ela expressa uma teoria do poder. A Constituição escrita não é uma declaração simbólica de aspirações coletivas. É uma lei com função clara: conter o exercício do poder e proteger os direitos dos indivíduos.


No cerne da teoria de Barnett está a distinção entre duas Constituições possíveis: a Democrática e a Republicana. A primeira organiza o poder para que a maioria governe. A segunda o limita, para que ninguém — nem mesmo a maioria — ultrapasse os direitos fundamentais dos indivíduos. O modelo republicano é aquele em que a autoridade nasce do consentimento e a legitimidade depende da fidelidade ao texto. É esse o modelo que pode — e deve — ser resgatado no Brasil.


A Constituição de 1988, embora muitas vezes interpretada como uma carta programática voltada à realização de fins sociais, contém dispositivos centrais que se alinham perfeitamente à tradição republicana. O preâmbulo declara o compromisso de “assegurar” a liberdade, a segurança, a igualdade e a justiça. O artigo 5º consagra a inviolabilidade da vida, da liberdade, da propriedade e da igualdade perante a lei. Esses direitos não são concedidos pelo Estado. São reconhecidos como anteriores a ele. A sua função é impedir o avanço do poder estatal sobre a esfera privada. E a Constituição é o instrumento técnico e institucional que dá forma a essa limitação.


Barnett afirma que a legitimidade de uma Constituição está em seu conteúdo, mas também no processo pelo qual ela é aplicada. Todos os que exercem autoridade pública juram obedecer à Constituição. Esse juramento não é simbólico. Ele é um ato de submissão a um texto com significado fixado no tempo. Quando um juiz decide com base em princípios vagos e ignora as palavras expressas da Constituição, ele viola a lei. E, ao violar a lei, dissolve a legitimidade do próprio poder que exerce.


Esse ponto é reforçado por uma distinção conceitual crucial: a diferença entre interpretação e construção. A interpretação busca o significado público original do texto constitucional. A construção aplica esse conteúdo a casos concretos, especialmente quando há vaguidade. Mas a construção jamais pode contradizer a interpretação. No Brasil, essa linha foi sistematicamente apagada. Princípios como a dignidade da pessoa humana, a função social da propriedade ou os valores sociais do trabalho passaram a ser usados para revogar, na prática, direitos fundamentais expressos. Isso subverte o pacto constitucional.


Barnett vai além da hermenêutica. Em The Structure of Liberty, ele desenvolve uma justificativa racional e estrutural para os direitos naturais e para os princípios do Estado de Direito. Ele identifica que toda sociedade, em qualquer época, precisa enfrentar três grandes classes de problemas: os problemas de conhecimento, os problemas de interesse e os problemas de poder. Para resolvê-los de forma estável e justa, é necessário um arcabouço institucional fundado em direitos individuais e regras gerais. Esses elementos não são preferências ideológicas — são exigências arquitetônicas. Do mesmo modo que certas leis da física regem a construção de uma ponte, certos princípios normativos são indispensáveis para sustentar uma ordem social livre.


Os problemas de conhecimento dizem respeito à dispersão das informações sobre o uso eficiente dos recursos e sobre quais são os direitos relevantes. Eles exigem instituições que permitam a descoberta espontânea de soluções. Os problemas de interesse envolvem o risco de que pessoas no poder priorizem seus próprios interesses — algo especialmente perigoso quando se trata de aplicar ou interpretar o Direito. E os problemas de poder surgem quando é necessário o uso da força para garantir o cumprimento das normas, criando riscos de abuso, erro e captura.


A solução barnettiana não é utópica. Não propõe eliminar o uso da força, mas constrangê-lo por meios institucionais. E é aqui que os direitos naturais se tornam indispensáveis: eles funcionam como fronteiras, delimitando a jurisdição de cada indivíduo sobre sua própria vida. A Constituição deve proteger essas fronteiras, e não autorizá-las a serem redesenhadas por tribunais, agências ou legisladores momentaneamente convencidos de sua superioridade moral.


Em uma entrevista no Rubin Report, Barnett reforça que os direitos não são apenas morais — são mecanismos práticos de separação de esferas de ação. Assim como as fronteiras políticas evitam guerras, os direitos evitam conflitos de convivência. São instrumentos de paz. Quando a Constituição protege os direitos, ela não está apenas fazendo justiça abstrata: ela está fornecendo as condições para a ordem. É nesse ponto que o originalismo de Barnett ganha força: ele não é apenas uma teoria interpretativa, mas uma proposta de estabilidade institucional.


Esse modelo é especialmente útil para criticar a concentração de poder no Brasil. O Estado brasileiro, como o americano criticado por Barnett, transformou-se em um administrador central de vontades políticas. Agências, tribunais e órgãos administrativos passaram a legislar por delegação ou omissão, criando uma burocracia normativa alheia ao controle social. A Constituição, que deveria conter esse avanço, é usada como justificativa para ele. O pretexto é sempre nobre: justiça social, inclusão, reparação. Mas o efeito é sempre o mesmo: substituição da liberdade por diretrizes.


Barnett alerta para os riscos da legitimação do monopólio da força. Quando se acredita que determinada instituição tem o direito exclusivo de definir o que é justo — e que esse poder deve ser aceito sem contestação —, um “efeito halo” a protege de críticas. Ela se torna intocável. No Brasil, esse fenômeno se manifesta de forma aguda no culto ao Supremo Tribunal Federal. A crença de que o STF “diz o que a Constituição deveria ser, e não o que ela é” transforma a Corte em poder originário — e revoga, na prática, a supremacia do texto sobre seus intérpretes.


A consequência é um modelo de legitimidade invertido: em vez de o poder ser legítimo por respeitar o texto, o texto é adaptado para legitimar o poder. É contra isso que se ergue o Constitucionalismo Republicano. A Constituição deve ser obedecida, não reinterpretada. Deve ser aplicada como foi escrita, não como gostaríamos que tivesse sido. E deve ser compreendida como a lei que governa os governantes — não como um cardápio de aspirações selecionáveis conforme as circunstâncias.


Randy Barnett nos lembra, com precisão quase matemática, que os direitos e princípios que sustentam uma sociedade livre são como os pilares de uma ponte. Ignorá-los não é apenas injusto. É estruturalmente insustentável. A Constituição de 1988 pode — e deve — ser restaurada como esse tipo de estrutura. Não para servir a projetos de poder, mas para limitá-los. Não para empoderar intérpretes, mas para submeter o governo à lei. A liberdade é anterior ao Estado. E a Constituição, quando leal ao seu propósito, é o escudo que protege essa liberdade da ambição de quem governa.


A necessidade de restaurar a Constituição como lei que governa os governantes não é um exercício teórico. É uma urgência concreta. O editorial “Isso não é Justiça”, publicado no dia 22 de março de 2025, pelo Estadão, ao denunciar a condenação desproporcional de uma cidadã por atos que jamais deveriam ter sido julgados pelo Supremo Tribunal Federal, ilustra de modo doloroso o que ocorre quando o texto constitucional é tratado como instrumento de poder e não como limite. Se a Constituição de 1988 fosse respeitada em seu significado original — se o STF reconhecesse os direitos fundamentais como barreiras intransponíveis ao arbítrio e sua própria competência como limitada pelo pacto republicano — essa decisão simplesmente não teria ocorrido. O julgamento, como apontou o editorial, fere a razoabilidade, o devido processo legal, a isonomia e o próprio conceito de Justiça. Mas ele é, sobretudo, o sintoma de uma ruptura mais ampla: o abandono da Constituição como norma vinculante. Quando a Suprema Corte deixa de ser governada pela Constituição, o que se dissolve não é apenas a credibilidade de um tribunal — é o próprio Estado de Direito. E por isso, restaurar a Constituição como ela é, e não como a querem, é o desafio central do nosso tempo.


*Leonardo Corrêa – Advogado, LL.M pela University of Pennsylvania, Sócio de 3C LAW | Corrêa & Conforti Advogados, um dos Fundadores e Presidente da Lexum. 


















publicadaemhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/restaurando-a-constituicao-de-1988-como-a-lei-que-governa-os-governantes/

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