Gabriel Wilhelms
Estamos diante da conclusão da investigação, notoriamente inclinada a apontar os fatos mais graves para justificar a narrativa de que houve uma tentativa de golpe de Estado e, ainda assim, no que concerne ao 8 de janeiro, a investigação só faz reforçar o que eu, como tantos outros, venho dizendo há muito tempo: não há como chamar aqueles atos de vandalismo de tentativa de golpe. Por reiteradas vezes, a PF recorda a obstinação das negativas de Freire Gomes e Baptista Júnior e a importância disso para podar os ânimos golpistas. Ora, se tal obstinação freou o golpe em 2022, quando Bolsonaro era a situação, resta evidente o que afirmei anteriormente sobre o 8 de janeiro (já na presidência de Lula): os vândalos não dispunham de meios para dar um golpe de Estado.
O que a Polícia Federal conseguiu demonstrar sim no seu relatório é que havia de fato um ânimo golpista no governo Bolsonaro, que integrantes do governo fizeram tratativas golpistas e que, ao que tudo indica, o próprio presidente tentou instigar os então comandantes das forças a embarcarem na aventura. Contudo, não é demonstrado que fizeram algo mais do que tramar. A única ação concreta empreendida teria sido as atividades de monitoramento do ministro Alexandre de Moraes, o que certamente pode acarretar punições pelo uso indevido dos recursos públicos, mas passa muito longe de uma tentativa de golpe. A própria explicação sobre o por que o plano teria sido abortado, isto é, o adiamento de um julgamento no STF, é bastante insatisfatória. Se estivessem decididos e devidamente amparados para dar um golpe, não seria uma mudança na agenda da suprema corte que os teria impedido. De qualquer forma, mesmo que essa houvesse sido a razão, a missão teria sido abortada de forma voluntária, de modo que não se demonstra que teria acontecido uma tentativa de golpe.
Não pretendo aqui menosprezar os fatos. É grave, gravíssimo, repito, que sequer se tenha cogitado a ideia. Quando digo que é grave, refiro-me a uma leitura política e moral, com a qual qualquer democrata iria concordar. Contudo, por mais execráveis que tenham sido essas tratativas, por mais que os elementos envolvidos, incluindo o ex-presidente, mereçam o opróbrio, ninguém deve ser punido pela mera cogitação de uma ação criminosa, sem que essa ação tenha sido concretizada ou tenha sido ao menos iniciada e interrompida de forma involuntária (as autoridades policiais descobrindo e interrompendo a ilicitude, por exemplo). Se você abre um arquivo do word e digita um plano de assassinato de um desafeto, mas não traz isso à realidade, você pode responder por homicídio? É claro que não.
No fundo, as autoridades policiais sabem que é muito frágil tratar por tentativa de golpe meras cogitações e conversas antirrepublicanas. Daí a importância do 8 de janeiro. Se aquelas depredações fossem a continuidade do intento abortado em 2022, então os envolvidos não apenas teriam cogitado, mas tentado de fato dar um golpe. É por isso que, embora se trate de um inquérito separado, o 8 de janeiro é primordial na narrativa apresentada no relatório da PF.
Percebam que se trata de um raciocínio circular. Não se afirmou desde o princípio que os vândalos haviam tentado dar um golpe? Essa foi a narrativa alexandrina, reverberada por grande parte da opinião pública, antes mesmo da delação de Mauro Cid e de se tomar conhecimento das tratativas golpistas do ano anterior. Por outro lado, não faltou quem, embora cobrasse, sim, uma punição para os vândalos, apontasse o ridículo que era tratar o quebra-quebra como tentativa de golpe. Temos então que, numa ponta, o 8 de janeiro é importante para que se confira maior gravidade à trama golpista, abortada, para ser pintado como a tentativa de fato; na outra, as revelações posteriores se tornam primordiais para sustentar que os baderneiros faziam parte de um plano devidamente orquestrado pelos mesmos conspiradores de antes.
A tentativa, frustrada, de apontar um nexo de causalidade entre uma coisa e outra é importante, inclusive, para a condenação dos elementos envolvidos em ambos os episódios, bem como para tentar frustrar uma possível tentativa de anistia por parte dos congressistas. Mais que isso, se tenta legitimar o estado de coisas estabelecido no país desde pelo menos março de 2019, quando foi instaurado o inquérito das fake news.
O relatório é talvez a peça mais abrangente de uma tentativa de oficializar uma narrativa que precede até mesmo as tratativas golpistas e o 8 de janeiro. O inquérito das fake news e os que dele foram derivados não foram justificados desde a primeira hora com a desculpa de proteger a democracia de radicais que operariam principalmente nas redes sociais? Pois agora argumentam que está provado que a democracia de fato esteve em risco, ignorando que, segundo a própria Polícia Federal, foi a posição firme de Freire Gomes e Baptista Júnior que impediu o golpe, não, portanto, nenhum inquérito aberto pelo STF. Ademais, ameaças à democracia já têm sua resposta devidamente estabelecida na lei, não demandando um estado de exceção como resposta, sobretudo de forma “preventiva”.
Mesmo apresentando um relatório cerca de dois anos depois dos fatos, referem-se a uma ameaça sempre presente, justificando o que tenho chamado de “salvamento eterno da democracia”. É por isso que é tão importante estabelecer o vínculo ideológico entre os elementos, tal como se tal vínculo fosse o fio condutor que ligasse todos ao pretenso golpe. O perigo desse raciocínio é que esse grau de subjetividade, sobretudo em um inquérito policial, pode levar à banalização do conceito de golpe, bem como justificar, pela transformação de meras posições ideológicas em atos criminais, a proscrição, não só de determinado grupo político, mas de seus milhões de apoiadores da vida e debate públicos. Se pura e simplesmente torcer por um desfecho, por mais ignóbil que seja, é tratado como algo criminoso, então não são mais suas ações apenas, mas seus próprios desejos que podem te colocar no banco de réus. Isso é catastrófico para o estado de Direito. Não podemos punir os desejos, tal como não podemos punir a “descrença” em um estado laico.
A narrativa alexandrina, que hoje inspira, entre outras instituições, a própria Polícia Federal, precisa desse risco constante, do salvamento eterno da democracia para justificar o arbítrio que caracteriza a suprema corte há mais de cinco anos, bem como para defender sua continuidade. Não é à toa que a PF conclui o relatório nestes termos: “Esse método de ataques sistemáticos aos valores mais caros do Estado Democrático de Direito criou o ambiente propicio para o florescimento de um radicalismo que, conforme exposto, culminou nos atos do dia 08 de janeiro de 2023, mas que ainda se encontra em estado de latência em parcela da sociedade, exemplificado no atentado bomba ocorrido na data de 13 de novembro de 2024 na cidade de Brasília/DF”.
A conclusão do inquérito é datada como 21 de novembro de 2024, mas notem que não se conclui o relatório sem lembrar o episódio ocorrido cerca de uma semana antes, tamanha a sanha de abarcar todo o possível na narrativa. O suicídio de um homem claramente perturbado teria como causa não problemas psicológicos, mas o mesmo radicalismo que gestou o 8 de janeiro. Ora, com esse nível de argumentação e dado o fato de que pessoas perturbadas, politicamente motivadas ou não, continuarão existindo, o “salvamento da democracia” terá mesmo que ser “eterno”.
Mas não será verdade que Bolsonaro alimentou um radicalismo que levou de fato pessoas a cometerem loucuras? Bolsonaro construiu uma carreira política se vendendo como um radical e não deixou de sê-lo nem por um segundo enquanto presidente. Na verdade, grande parte das críticas que com justiça a ele devotamos nesse período foi justamente por sua insistência em governar no palanque, bem como por insistir em devaneios, como a narrativa de fraude nas eleições de 2018, mesmo tendo saído vitorioso do pleito. Bolsonaro conseguiu angariar, é verdade, um séquito de seguidores fervorosos; falo de seguidores mesmo, não apenas apoiadores, de gente que chegou ao cúmulo de crer que o “Messias” que carrega em seu nome teria algum sentido profético. O bolsonarismo, como movimento político, foi de fato uma das coisas mais tenebrosas e toscas que aconteceram nos últimos tempos por aqui e não é exagero dizer que ao menos uma parcela da população desenvolveu um culto à personalidade do ex-presidente. Ele, por sua vez, permaneceu semanas calado após a derrota para Lula — período no qual, ao que tudo indica, estava dedicado a conversas golpistas e antirrepublicanas — e não moveu um dedo para desmobilizar as hostes de radicais que acampavam nas portas dos quartéis. Politicamente, portanto, é Bolsonaro responsável por alimentar o radicalismo bolsonarista? Não tenho dúvidas de que é. Agora, ele é responsáve criminalmente falando? E ainda mais importante: aqueles que depredaram prédios públicos em 8 de janeiro de 2023 agiram por deliberação expressa de Bolsonaro ou de seus outrora subalternos? Não e não.
O radicalismo de qualquer cor é mesmo uma coisa reprovável, mas, em terra de lei, punem-se os atos, não a intenção; pune-se o crime cometido, não o desejo de cometê-lo; e pune-se com provas, estabelecendo nexo de causalidade entre as coisas, não com fatos desconexos e interpretações subjetivas.
Se me animo a escrever este longo artigo, não é, como disse na largada, para fazer a defesa de Fulano ou Beltrano, mas sim do estado de Direito e da liberdade. O relatório comentado é uma vasta peça de propaganda, a tentativa dos “vencedores” de contar a história, mas, sobretudo, mais uma arma a ser usada na sanha alexandrina contra a liberdade de expressão no país. Se o “nexo de causalidade” é o mero vínculo ideológico, se “pensamento positivo” e “torcida” são prova de arquitetura de golpe, se há um “radicalismo” ainda “em estado de latência em parcela da sociedade” e se a força motriz desse radicalismo são, como vem defendendo o Olimpo togado, as redes sociais e o que nelas é dito, então só estaríamos “salvos” com o controle do discurso e com a proscrição daqueles que fossem qualificados (por algum ministério da Verdade) como “radicais” – e, para ser qualificado como radical, como aqui demonstrado, meus caros, basta ser crítico dessa versão corrompida dos fatos e do modus operandi abusivo inaugurado com o inquérito das fake news. Não é preciso que você empreenda alguma ação de vandalismo ou nem mesmo que defenda um golpe de Estado; basta que endosse algo como o impeachment de Moraes, por exemplo.
Fontes:
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/09/como-foi-reuniao-bolsonaro-ministros-investigada-pf.htm
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/02/09/general-augusto-heleno-virar-mesa-eleicoes-reuniao-ministerial.htm
https://g1.globo.com/globonews/estudio-i/noticia/2024/11/21/mauro-cid-relembre-a-trajetoria-do-ex-ajudante-de-ordens-de-bolsonaro-entre-prisoes-e-depoimentos.ghtml
https://www.poder360.com.br/justica/pf-ve-tentativa-de-anular-provas-com-audios-de-mauro-cid/
https://oglobo.globo.com/politica/noticia/2024/11/21/ex-comandantes-do-exercito-e-aeronautica-revelaram-a-pf-que-bolsonaro-apresentou-plano-de-golpe-veja-os-depoimentos.ghtml
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/novo-depoimento-de-mauro-cid-ganha-forca-apos-ex-comandantes-confirmarem-reuniao-para-discutir-minuta-golpista/
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ex-comandante-do-exercito-confirma-reunioes-sobre-minuta-do-golpe-dizem-fontes-da-pf/
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/ex-comandante-do-exercito-ameacou-prender-bolsonaro-se-ex-presidente-insistisse-em-plano-de-golpe/
https://www.poder360.com.br/poder-justica/leia-a-integra-com-as-884-paginas-do-inquerito-do-stf-sobre-golpe/
https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm
https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2024/11/20/quem-e-mario-fernandes-general-preso-pela-pf-envolvido-em-trama-golpista.htm
https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/suposto-autor-de-minuta-defende-em-livro-remocao-de-ministros-do-stf
https://www.cnnbrasil.com.br/politica/em-mensagens-obtidas-pela-pf-militar-explica-recuo-de-bolsonaro-citando-golpe-fracassado-no-peru/
publicadaemhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/nao-ha-nexo-de-causalidade-entre-trama-golpista-e-08-de-janeiro-conclusao/
0 comments:
Postar um comentário