por Flávio Gordon
Embora o seu título possa dar essa impressão, o texto de hoje não versa sobre o tipo sociopolítico contemporâneo jocosamente apelidado de “isentão”. Portanto, que o leitor não espere encontrar uma análise sobre essa curiosa criatura para quem a virtude está no meio-termo entre a verdade e a mentira, o justo e o injusto, e sobre quem, aliás, já escrevi outrora. Não, o homem aqui referido nunca esteve em cima do muro, mas – dir-se-ia até o contrário – abaixo dele. Ou, mais precisamente, foi ele o responsável direto pela parte mais baixa de um muro que se pode conceber: o seu traçado no solo. Pois, com tinta e pincel, esse homem traçou a linha por onde passaria o muro mais famoso e infame da história, o Muro de Berlim. Estou falando de Hagen Koch, o cartógrafo pessoal de Erich Honecker, secretário-geral do Partido Socialista Unificado da Alemanha (PSUA) e ditador da Alemanha Oriental, a extinta República Democrática Alemã (RDA).
Como disse na coluna anterior, desgraçadamente o Brasil de hoje me faz pensar recorrentemente na RDA e em sua instituição-símbolo: a Stasi. Penso, sobretudo, na autoconfiança excessiva dos agentes mais subalternos do regime presente, que parecem crer numa salvaguarda eterna para o cumprimento de ordens ilegais e moralmente vis, como se o estado de exceção fosse durar para sempre. Penso, por exemplo, na naturalidade e quase inocência com que, em pleno Senado Federal, um diretor administrativo da Polícia Federal admitiu o monitoramento das opiniões políticas de cidadãos estrangeiros de ingresso no Brasil, como ocorreu com o jornalista português Sérgio Tavares, crítico do regime lulopetista, que, numa delegacia do Aeroporto de Guarulhos, passou por um controle do pensamento ali onde deveria ter passado apenas por um controle imigratório. Talvez esses funcionários públicos nem sequer estejam se dando conta do significado histórico de suas condutas, preferindo entregar-se ao mais comum dos narcóticos da consciência: “eu só estava cumprindo ordens” – o tipo de racionalização muito bem alcunhada por Hannah Arendt de a banalidade do mal. Eles deviam conhecer melhor a história de Hagen Koch, que passou de um jovem comunista promissor, uma estrela precoce da Stasi, a um dos muitos abandonados pelo regime, que o fez de bode expiatório.
A formação comunista de Hagen começou com o pai, o senhor Heinz Koch. “Minha história é consequência direta da história de meu pai” – disse Hagen à jornalista Anna Funder, que o entrevistou para escrever Stasilândia: como funcionava a polícia secreta alemã, livro sobre o qual falei na semana passada. Nascido em 5 de agosto de 1912 numa cidadezinha da Saxônia, Heinz descobriu, quando criança, ser um filho ilegítimo. Sua mãe era a sua irmã mais velha. Marginalizado pelos colegas por causa de sua situação, em 1929 ele decidiu ingressar no Exército, esperando que o uniforme pudesse encobrir o estigma do nascimento. Tendo se comprometido a servir por 12 anos, em 1941 ele se viu estacionado na França, como integrante da força nazista de ocupação, e não pôde ser dispensado, o que ocorreria apenas ao fim da guerra, em 1945.
Por terem sido libertados do “fascismo” pelos russos, dos alemães orientais foi exigida uma lealdade à “irmandade comunista”. Numa falsificação histórica, os comunistas da RDA remeteram a origem do nazismo exclusivamente à Alemanha Ocidental
Após a rendição de Berlim, em maio de 1945, Heinz Koch conseguiu retornar para junto da mulher e dos filhos na cidade de Dessau, que acabaria sob controle russo. Os russos governaram o leste da Alemanha até a criação da RDA como Estado-satélite soviético, em 1949. Por terem sido libertados do “fascismo” pelos russos, dos alemães orientais foi exigida uma lealdade à “irmandade comunista”. Da noite para o dia, a despeito de suas histórias pessoais, todos os alemães orientais precisaram se transformar de nazistas em comunistas desde criancinhas. Como num passe de mágica, era como se nunca tivesse havido nazistas no leste da Alemanha. Numa falsificação histórica, os comunistas da RDA remeteram a origem do nazismo exclusivamente à Alemanha Ocidental.
Para dar início ao novo país “livre do fascismo”, bem como ao novo homem que o habitaria, obviamente o regime-fantoche da URSS achou por bem começar pelas crianças. Os antigos professores do leste foram demitidos, e novos professores socialistas foram contratados, a fim de moldar as crianças nos novos valores. A fim de formar “professores do povo” e encaminhá-los às escolas, as autoridades da RDA criaram programas de treinamento em tempo recorde. Em 1946, o próprio Heinz Koch, que mal terminara a escola, foi julgado apto para lecionar em Lindau, a 30 quilômetros de Dessau.
Em outubro daquele mesmo ano, aconteceram as primeiras eleições “livres e democráticas” da RDA – tão “livres e democráticas”, por óbvio, como são hoje as eleições na Venezuela. Formalmente, as cédulas imitavam uma democracia normal, como a da Alemanha Ocidental, nelas constando aproximadamente os mesmos partidos: os democratas cristãos de centro-direita, os democratas liberais e os comunistas. Na prática, os comunistas recebiam avalanches de votos, com maiorias que desafiavam a credulidade: de 98% para cima. Mas, em 1946, muitos ainda acreditavam na “democracia” popular do regime comunista. Dentre os crédulos, estava Heinz Koch, que disputou a prefeitura de Lindau pelo partido democrata liberal. E embora, naquele caso, Koch tenha excepcionalmente conseguido vencer com a maioria dos votos – já que as pessoas pareciam desejar um meio-termo entre a “direita” e a “esquerda” –, o candidato comunista derrotado, que era também presidente do comitê eleitoral (e qualquer semelhança com o Brasil terá sido mera coincidência), convocou uma reunião na câmara municipal “para avaliar a votação”.
Durante a reunião, Koch foi acusado de ter servido ao Exército “fascista e imperialista” por 16 anos. Em vez de empossado no cargo eletivo para o qual fora eleito, acabou sumariamente condenado a sete anos num campo de prisioneiros de guerra. Entre 1945 e 1950, a polícia secreta russa deteve prisioneiros de guerra, nazistas e outros, como o sargento de infantaria Heinz Koch, que pudessem atravessar-lhe o caminho. Ela reutilizou os campos de concentração de Sachsenhausen e Buchenwald, bem como outras instalações; uma vez lotadas, construíam novas prisões ou mandavam as pessoas para a Rússia.
Depois de um ano de prisão e maus tratos, o pai do cartógrafo do Muro de Berlim recebeu a visita do comunista que o mandara prender. Koch esperava ser morto, mas recebeu uma oferta expressa de forma gentil. Caso concordasse em abandonar os democratas liberais e se juntar aos comunistas do PSUA, seria libertado imediatamente, podendo voltar para o seio da família. Caso recusasse a oferta, ao contrário, as consequências estavam obviamente implícitas. Koch aceitou e, agora na condição de “professor do povo”, retornou para lecionar a doutrina na única escola primária de Lindau, onde estudavam todos os filhos dos camaradas, e onde ele estaria sempre sob a vigilância do partido. Naquele mesmo ano, seu filho Hagen entrou na escola e, junto a seus colegas, aprendeu com o pai a ser um socialista-modelo.
Em 5 de abril de 1960, aos 20 anos de idade, o jovem comunista Hagen Koch ingressou no Ministério para a Segurança do Estado, a Stasi (forma curta de Ministerium für Staatssicherheit). Por ter estudado desenho técnico, ele logo se destacou e caiu nas graças do outro Erich que, junto com Honecker, comandava a RDA: Erick Mielke, chefe da Stasi. De imediato, Koch foi designado diretor do Escritório de Desenho Cartográfico e Topográfico. Em 13 de agosto de 1961, ele foi chamado para redesenhar as fronteiras de Berlim. Segundo descreve para Anna Funder: “Com a perna esquerda do lado oriental e a direita do lado ocidental, tracei minha linha branca pela rua. Concentrei-me na linha, e não no que acontecia a meu redor. Disse a mim mesmo que aqueles do lado ocidental eram os inimigos, os saqueadores e aproveitadores”. Koch andou mais de 50 quilômetros naquele dia. “No dia seguinte, mal conseguia ficar em pé.”
O regime ao qual Hagen Koch tanto se dedicara proibiu-o de enterrar o próprio pai. Eis como os comunistas tratam os seus próprios colaboradores – mesmo os mais destacados – uma vez que eles se tornem um estorvo ou já não sirvam mais
Em 1966, Heinz Koch, pai de Hagen, localizou o pai biológico, que morava na Holanda. O avô de Hagen veio à RDA com um visto comum, de um dia, para conhecer o filho e o neto. Mas, como Hagen trabalhava na Stasi, e cometera o pecado mortal de não comunicar sobre a visita, Heinz foi demitido do emprego. “Foi aí que meu pai me contou sobre ser filho ilegítimo, sobre a candidatura a prefeito e sobre as ameaças que fizeram a ele, caso ele não me transformasse num bom socialista” – lembra Hagen. Sentindo-se culpado pelo fato de o seu trabalho impedir seu pai e seu avô de se conhecerem, o cartógrafo pessoal do regime decidiu sair e apresentou o seu pedido de exoneração.
No dia seguinte, foi preso e trancafiado numa cela. Acusaram-no de uma sorte de crimes, entre traição e outros, alguns totalmente inventados e inusitados, como o de distribuir material pornográfico. Ocorre que, para celebrar o casamento de um amigo, Koch fizera uma dúzia de cópias de um panfleto artesanal mimeografado. No estilo alemão tradicional, o panfleto zombava do noivo, da noiva e dos parentes. Exibia caricaturas deles (inteiramente vestidos), dotadas de balões, e estava muito longe de ser pornográfico. Mas, como na RDA todo material impresso era proibido, Koch cometera uma ilegalidade.
Koch foi mantido preso por duas noites, sem que sua esposa soubesse onde ele estava, e sem qualquer contato externo, inclusive com advogados. No terceiro dia, a Stasi e o promotor vasculharam seu apartamento, em busca de mais material “pornográfico” a ser utilizado como prova. Não encontrando nada, resolveram interrogar a sra. Koch. Perguntaram a ela sobre a vida sexual do casal, e sobre se algum problema nessa área não teria feito do seu marido um pornógrafo. Sem entender do que se tratava, a sra. Koch começou a chorar, e ficou ainda mais perplexa quando o promotor a acusou de haver instigado o marido à pornografia. Enquanto os homens da Stasi reviravam o apartamento de cima a baixo, a assustada mulher ouviu do promotor: “Deixe-me perguntar uma coisa: a senhora teria alguém para cuidar do seu filho pequeno pelos próximos, digamos, cinco anos?” Ao questionar o porquê daquilo, recebeu a resposta implacável: “Porque eu lamento dizer, senhora Koch, mas, como instigadora de um esquema de pornografia, as penas que aguardam a senhora serão severas”.
Desesperada, a sra. Koch perguntou o que queriam dela, e implorou para que não a afastassem do filho. “Frau Koch” – disse o promotor –, “eu só vejo uma chance para a senhora. A senhora precisa distanciar-se de seu marido e de tudo que ele fez, mas precisa fazer isso de maneira crível, isto é, de um modo convincente. Só aí eu poderia recomendar que o juiz seja indulgente no seu caso”. Ato contínuo, o agente comunista abriu uma maleta e de lá retirou um papel, todo preenchido, com nome completo, data de nascimento, número da identidade e endereço completo dela e do marido. A sra. Koch só precisava assinar. Era o papel do divórcio.
Na prisão, mostraram a Hagen Koch o papel assinado e maldisseram sua mulher. Acossado e desesperançoso, Koch acreditou em tudo. Três dias depois, segundo o procedimento padrão de chantagem e pressão, o secretário do Partido visitou-o na prisão com uma oferta irrecusável. Se ele retirasse seu pedido de exoneração, estaria livre do cárcere. Disseram ainda que, agora que estava livre da influência negativa da mulher, poderia até ser promovido. Mas ele já não queria nada do regime e perdera o gosto pela vida.
Em 1985, morreu Heinz Koch. Sua irmã, que morava em Hamburgo, na Alemanha Ocidental, recebeu permissão para ir ao funeral. Devido à presença dela, proibiram Hagen de ir ao enterro do pai. Sim, o regime ao qual tanto se dedicara proibiu-o de enterrar o próprio pai. Eis como os comunistas tratam os seus próprios colaboradores – mesmo os mais destacados – uma vez que eles se tornem um estorvo ou já não sirvam mais. E isso, por si só, deveria servir de lição aos colaboradores do presente regime no Brasil.
Flávio Gordon, Gazeta do Povo
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