por Flávio Gordon
“Sob Stalin, o regime soviético foi violento. Para manter o regime no poder, milhões de pessoas foram presas, detidas, deslocadas, sujeitas à fome, escravizadas ou eliminadas. A violência era indiscriminada; a maioria desses milhões sofreram não por serem conhecidos inimigos do regime, mas por serem vistos como inimigos potenciais a serem neutralizados antes de fazer o mal, ou mesmo inimigos ‘inconscientes’.” (Mark Harrison, Um dia viveremos sem medo)
Semana passada, senti-me compelido a reler Um dia viveremos sem medo: a vida cotidiana sob o Estado policial soviético, grande livro do historiador e economista Mark Harrison, publicado em 2016 pela Hoover Institution Press. Inserindo-se numa linha de pesquisa que tem por antecessores exemplares obras como o clássico de Robert Conquest sobre o grande expurgo stalinista (publicado ainda nos anos 1960, antes da abertura dos arquivos de Moscou), ou o livro de Orlando Figes sobre a vida privada na Rússia de Stalin, o estudo documenta um período de quatro décadas de totalitarismo, com base no estudo de sete casos individuais de vítimas da polícia política.
Harrison topou com os casos de modo algo aleatório, ao investigar outros assuntos na biblioteca do Instituto Hoover da Universidade de Stanford, onde foi um dos primeiros economistas ocidentais com acesso aos arquivos oficiais soviéticos após o colapso da Cortina de Ferro. “Não escolhi as histórias a partir de um plano de pesquisa” – conta o autor. “Antes, foram elas que me escolheram e agarraram pelo colarinho.”
A realidade brasileira não fica muito a dever ao totalitarismo soviético, mimetizando o mesmo modelo de perseguição política mediante processos fraudulentos e campanhas de assassinato de reputação de “inimigos de Estado”
Os protagonistas do livro – um artista promissor, um engenheiro, um pensionista reformado, uma funcionária pública, um professor e um grupo de turistas – são descritos em histórias passadas entre os anos de 1930 e 1970. Ao longo desse período, embora o Estado policial tenha progressivamente se sofisticado, as missões subjacentes permaneceram fixas. Partindo dos processos individuais tal como documentados nos arquivos, o autor usa-os para ilustrar os princípios básicos sobre os quais a polícia política operou durante sua história, da revolução bolchevique de 1917 até o colapso da URSS em 1991. Abrangendo uma vasta porção da paisagem geográfica soviética, das fronteiras manchurianas com a China até os limites da região báltica, as histórias partilham um mesmo tema. Em cada caso, algo acontece que dispara uma investigação, conduzida sempre de maneira pérfida e fraudulenta, de modo que a coisa escale até o aniquilamento completo da vítima.
Segundo Harrison, foram sete os princípios orientadores do Estado policial soviético durante seu funcionamento: 1. seu inimigo está se escondendo; 2. comece pelos suspeitos de sempre; 3. estude os jovens; 4. impeça o riso; 5. a rebelião espalha-se como fogo; 6. apague toda fagulha; 7. a ordem é criada mediante aparências. As explicações do autor são notavelmente concisas.
Quanto ao primeiro princípio, é justamente com base na premissa de que o inimigo anda escondido que o ditador precisa de seus agentes disfarçados – uma polícia secreta que possa caçar e desentocar os opositores. Quanto ao segundo, há algo que, da perspectiva do regime, os suspeitos de sempre não podem esconder: seus passados. Eis por que a necessidade de checar o passado de cada um, suas origens sociais, histórico familiar e antigas conexões políticas. Quanto ao terceiro, para além dos suspeitos de sempre, há também aquela categoria de pessoas das quais se deve suspeitar justamente por nada saber sobre elas: os jovens. Quanto ao quarto princípio, o Estado totalitário vê o perigo da piada não propriamente na piada em si mesma, mas no seu compartilhamento. Ao dividir nosso senso de humor em comum, temos como resultado a formação de um laço ilícito, uma rede clandestina de consumidores e fornecedores de piadas. Carecendo de registro de membros, e de uma estrutura autorizada pelo Partido, eis porque a rede é suspeita, demandando investigação e supressão. Quanto ao quinto, o que mantém a polícia secreta em constante vigília é o medo de uma rebelião vinda do nada. Tudo parece calmo e sonolento, e então uma pequena fagulha se espalha. E logo as campinas estão em chamas. Donde vem o sexto princípio do Estado policial, segundo o qual é preciso impedir a todo custo a fagulha inicial.
Resta o sétimo e derradeiro princípio, talvez o mais fundamental de todos. Os dirigentes soviéticos sabiam ser impossível conhecer os pensamentos mais íntimos dos indivíduos. Em lugar, portanto, de mudar esses pensamentos privados diretamente, seu foco estava no controle do comportamento público. Isso implicava recusar ao cidadão qualquer alternativa que não a de se conformar. A cada vez que alguém pensasse, o regime exigia-lhe ao menos aparentar lealdade para com as normas políticas e legais. Cada aparência de lealdade, por sua vez, exercia um notável efeito sobre os outros. Ao conformar-se, cada um espelhava a conformidade daqueles ao seu redor. O resultado era uma imagem hiperbólica de lealdade. Assim, embora muitos pudessem intimamente entreter pensamentos rebeldes ou dissidentes, cada um sentir-se ia publicamente sozinho.
Uma semana depois de reler o livro de Mark Harrison, fui teletransportado para uma realidade brasileira que não fica muito a dever em termos de perfídia, obscurantismo e tirania, mimetizando o mesmo modelo de perseguição política mediante processos fraudulentos e campanhas de assassinato de reputação de “inimigos de Estado”. A cada dia, a assim chamada “democracia brasileira” soa mais e mais como uma paródia grotesca, em nome da qual seus coveiros a enterram debaixo de sete palmos. Tivemos, apenas na última semana, episódios como o covarde banimento da influenciadora digital Bárbara Destefani do YouTube, por ordem judicial; o ministro da justiça comunista Flávio Dino – uma espécie de fóssil vivo, materializado diretamente dos embolorados escritórios da NKVD – ameaçando as redes sociais e decretando que “esse tempo da autorregulação, da liberdade de expressão como um valor absoluto, esse tempo acabou no Brasil”; e a cassação do deputado Deltan Dallagnol por ordem do tribunal companheiro do regime petista... Levando em conta o fato de estarmos apenas no primeiro semestre do primeiro ano da ditadura, é-nos ainda difícil, a esta altura, ter a certeza estampada no título de Harrison. Será que, de fato, um dia viveremos sem medo? Que Deus assim o deseje...
P.S.: Este artigo é dedicado a todas as vítimas até agora já registradas, entre figuras públicas e cidadãos anônimos, da ditadura socialista ora instaurada no Brasil.
Gazeta do Povo
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