por Sérgio Moro
Causou grande surpresa a decisão do TSE de cassação do mandato do deputado federal Deltan Dallagnol. O Tribunal entendeu que Deltan, ao pedir exoneração do cargo de procurador da República, em dezembro de 2021, teria a intenção de evitar a instauração de processos administrativos disciplinares que poderiam levar a sua futura demissão e inelegibilidade. Enquadrou-o na lei da ficha limpa e, na prática, deu procedência à impugnação de seu registro de candidatura. O efeito prático é a cassação de seu mandato.
Respeitam-se as instituições e as decisões judiciais, mas discorda-se veementemente da interpretação da lei adotada pelos ministros. A Lei Complementar 64/1990 é clara ao prever a inelegibilidade aos magistrados e membros do Ministério Público que sofrerem sanção de perda de cargo ou de aposentadoria compulsória. Como medida moralizante, também prevê a inelegibilidade para aqueles que “tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”. A ideia aqui é penalizar aquele que, antevendo a punição, serve-se de subterfúgio no curso do processo, renunciando ou se aposentando no cargo para evitar a continuidade do processo disciplinar e que resultaria na aplicação da sanção.
Ocorre que o deputado, como reconhecido pelo próprio TSE, não respondia, na data da exoneração, a qualquer processo administrativo disciplinar. Havia apenas apurações preliminares que poderiam ou não resultar na abertura de um processo. O TSE, entretanto, entendeu que a exoneração teria por intenção evitar a futura abertura de um processo. Teria havido, portanto, uma burla à lei.
O problema é que a lei estabelece um marco temporal objetivo, a exoneração ou a aposentadoria voluntária na pendência de um processo administrativo disciplinar, e o julgado elastece, contra a letra da lei, o alcance da inelegibilidade.
A criatividade judicial, com o respeito devido ao TSE, gera insegurança jurídica. A mesma lógica do precedente pode ser aplicada a outras hipóteses similares previstas na lei. Diz ela, por exemplo, que fica igualmente inelegível o chefe do Poder Executivo ou o parlamentar que renuncia ao seu mandato desde o oferecimento de representação capaz de autorizar processo que possa resultar em perda de mandato. Assim, um prefeito que renunciar após representação por impeachment ou um deputado que renunciar após representação na Comissão de Ética são alcançados pela ficha limpa e ficam inelegíveis. Se passar a valer a lógica do precedente do TSE, eles poderão ficar inelegíveis mesmo se renunciarem antes de qualquer representação e desde que haja uma avaliação pelo tribunal de que uma representação seria possível em um momento futuro. Além de elastecer o alcance da inelegibilidade prevista da lei para momento anterior à representação, o julgamento ficaria condicionado a uma avaliação subjetiva dos motivos da renúncia, dando espaço a divergências amplas sobre fatos e intenções dos envolvidos.
A criatividade judicial, com o respeito devido ao TSE, gera insegurança jurídica
Precedentes têm vida própria e valem para o futuro, tendo consequências imprevisíveis. Não é só o TSE atual que poderá eventualmente empregar a interpretação inovadora em casos similares. Ele, o precedente, poderá ser invocado em futuras formações do TSE, quando o cenário político já estiver alterado, e igualmente os 27 TREs dos Estados. Uma sombra de incerteza foi estendida para mandatos presentes e futuros.
Critico o julgamento, mesmo tendo ciência que, anteriormente, o TSE decidiu ao meu favor quando rejeitou impugnação da minha candidatura a Senador, refutando o argumento descabido do PT de que eu teria renunciado ao cargo de juiz em novembro de 2018 para também escapar de averiguações preliminares então existentes no CNJ. Acertadamente, o TSE entendeu que minha renúncia visava permitir que eu assumisse o cargo de Ministro da Justiça e não a escapar de qualquer e improvável sanção disciplinar. Ainda assim, tal avaliação sequer era necessária, pois quando de minha renúncia não estava pendente qualquer processo administrativo disciplinar.
Uma sombra de incerteza foi estendida para mandatos presentes e futuros.
O melhor é deixar de lado a análise de supostas intenções e ficar com causas objetivas de inelegibilidade e com marcos temporais definidos, como prevê expressamente a lei. Do contrário, abrir-se-á o campo da subjetividade e o da discricionariedade na aplicação de uma lei restritiva de direitos políticos, o que pode ter como consequência o arbítrio e a desconfiança.
É ainda paradoxal que a criatividade interpretativa tenha resultado na imposição da lei da ficha limpa ao deputado Deltan Dallagnol, que, como procurador da República, se notabilizou pelo histórico profissional de combate à corrupção e pela luta pela integridade. Pode-se, eventualmente, discordar de Deltan, da política que ele defende, das ideologias que carrega, do seu discurso, pode-se até discordar da Operação da Lava Jato (minha opinião é altamente positiva a todos esses temas), mas não creio que haja disputa sincera acerca de seu caráter e honestidade. Eventuais discordâncias quanto a esse ponto são tributáveis a mero calor ideológico e a desinformações. Cassar seu mandato com base na lei da ficha limpa é uma contradição lógica. Espero que a decisão possa ser revista pelo próprio TSE ou pelo STF ou que se encontre uma saída legal para que Deltan Dallagnol possa rever o seu mandato e para que os seus mais de 344 mil eleitores paranaenses possam ter seus votos preservados.
Gazeta do Povo
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2023/05/tempos-de-inseguranca-por-sergio-moro.html
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