Jornalista Andrade Junior

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

'Culpado é mais lucrativo',

  diz Augusto Nunes


Padroeiros de bandidos bilionários tentam confiscar o mandato de deputados inocentes


Ahumanidade está duas doses (de uísque) abaixo do normal, ensinou nos anos 50 o ator Humphrey Bogart no século passado. E a meia garrafa (de vinho) da revogação do sentimento da vergonha, provaram em 17 de janeiro de 2022 os advogados Alberto Toron e Antônio Cláudio Mariz de Oliveira. A dupla foi escolhida para saudar, no clímax do jantar organizado por bacharéis em Direito aglomerados no grupo Prerrogativas, a celebração do casamento político que juntou Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin. O atraso da programação do evento em curso no restaurante em São Paulo prolongou a fase de aquecimento etílico. Quando a hora da discurseira chegou, os doutores estavam no ponto para matar de inveja o orador oficial do mais detestável clube dos cafajestes.

Toron aproximou-se do microfone sobraçando uma beca, limpou a garganta com um pigarro e, com a expressão deslumbrada de criança que está contemplando uma aparição da Virgem Maria, explicou por que a estrela do jantar merecia vestir aquela prima pobre da toga muito apreciada por sumidades da série B do Campeonato Judiciário. “O presidente Lula é o mais elevado símbolo da Justiça”, caprichou Toron na condecoração retórica. É preciso muito treino para erguer a tais altitudes, sem ficar ruborizado, um condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro por nove magistrados de três instâncias distintas. Não é para qualquer um aposentar a deusa Themis e substituí-la por um larápio que ficaria na gaiola bem mais que 580 dias se uma chicana urdida no Supremo Tribunal Federal não o tivesse devolvido aos palanques. O que fez Toron, portanto, não foi pouca coisa. Mas pareceu quase nada depois da performance de Mariz.

Louvado por seus contemporâneos, incensado pelos jovens discípulos, o veterano criminalista especializou-se em defender o indefensável. A lista de clientes informa que os serviços de Mariz raramente são requisitados por inocentes. A galeria dos fregueses famosos é ornamentada por celebridades como o jornalista Antônio Pimenta Neves (que matou a namorada com um tiro nas costas e outro na cabeça) ou Suzane Von Richthofen (que encomendou o assassinato de seus pais ao namorado). O craque em casos cabeludíssimos conseguiu enxergar uma certa doçura em Suzane e socorreu Pimenta Neves com uma tese audaciosa. O jornalista homicida não precisava de cadeia, garantia o doutor. É que a dor provocada por uma curta notícia sobre o caso em qualquer página de jornal era muito mais devastadora que cinco anos de isolamento no pior dos presídios.

Doutores que calculam honorários em dólares por minuto encontraram sua Serra Pelada na maior operação anticorrupção da história

Gente assim não nega fogo, sabiam os participantes da noitada no restaurante. Mas nenhum imaginava que o segundo orador fosse tão longe com o que recitou enquanto mirava os olhos de Lula: “Se o crime já aconteceu, de que adianta punir? Pode até punir, mas a corrupção não vai acabar”. Com 18 palavras, duas vírgulas e um ponto de interrogação, Mariz ensinou que a taxa de criminalidade só será reduzida com a absolvição dos bandidos no minuto seguinte à consumação do crime, justificou a soltura de Lula, aplaudiu a agonia da Lava Jato, imortalizou a corrupção, mostrou como se esvaziam sem motins nem rebeliões todos os presídios superlotados e deixou claríssimo que o país só terá jeito quando tratar com carinho e respeito a população fora da lei.

O Brasil decente demorou um ano para descobrir que a face sórdida do Prerrô, exibida pela dupla Toron e Mariz, não é mais sombria que a outra, escancarada neste janeiro por bucaneiros do grupo. Com uma liminar encaminhada a Alexandre de Moraes, ministro do STF e presidente do Tribunal Superior Eleitoral, um punhado de padroeiros de meliantes sem cura tentou suspender a posse de 11 deputados federais eleitos em outubro e já diplomados pelo TSE. A ofensiva destinada a guilhotinar milhões de votos se ampara numa mentira grosseira: os parlamentares teriam apoiado a erupção de violência registrada na Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro. A fantasia camufla o motivo real da agressão à democracia: os 11 alvos não pertencem à seita que vê em Lula seu único deus.

Moraes, desta vez, fez o que a lei e a sensatez determinam: solicitou o parecer da Procuradoria-Geral da República, que demorou poucas horas para recomendar o sepultamento do aleijão jurídico. Com igual agilidade, o ministro comunicou aos estafetas do Prerrogativas — Prerrô, para os íntimos — que houvera um erro de destinatário. Denúncias do gênero, desde a diplomação, devem ser endereçadas à direção da Câmara dos Deputados e/ou à comissão encarregada de lidar com possíveis atentados ao decoro. Assim, quem sonha com a liberdade de criminosos juramentados enquanto faz o diabo para confiscar mandatos legitimados pelo voto popular que vá cantar em outra freguesia. Ou empregue o tempo ocioso na exploração da mais recente jazida localizada no território desmatado pela Lava Jato. Começou a corrida rumo aos tesouros vislumbrados nas dobras e brechas dos acordos de leniência.

Doutores que calculam honorários em dólares por minuto encontraram sua Serra Pelada na maior operação anticorrupção da história. As contas bancárias dos cardeais do Prerrô engordaram muitos milhões graças à expansão da clientela composta de poderosos patifes — que se imaginaram condenados à eterna impunidade até começarem a ouvir, sempre às 6 da manhã, pressagas batidas na porta. Foram para a cadeia diretores da Petrobras nomeados por Lula, executivos do segundo escalão apadrinhados por Lula, empreiteiros e industriais associados a Lula, ministros de Lula, parentes de Lula, tesoureiros do PT escolhidos por Lula, dirigentes de partidos subordinados a Lula, fora o resto. Essa gente tinha dinheiro de sobra para bancar a incessante procissão de espertezas judiciais, recursos e pedidos de habeas corpus que só começou a minguar quando o STF resolveu estancar a sangria e chegou ao epílogo com a libertação de Sérgio Cabral.

Os bons tempos podem voltar com o tesouro exposto pela suspensão do combate aos corruptos. A vigilância de juízes federais honestos e procuradores sem medo desapareceu. Por que não interromper o pagamento das parcelas fixadas nos acordos de leniência, que livraram de punições donos de empresas envolvidas na imensa ladroagem, e embolsar o bilionário fruto do calote? Puxada por Joesley Batista, chefão da J&F, a fila dos espertalhões vai crescendo com a incorporação de negociantes que não vivem sem a companhia de advogados sabidos. A Justiça parece sem tempo nem paciência para preocupar-se com mais um avanço dos quadrilheiros. Deve estar ocupada demais com o combate a difusores de fake news, arquitetos de intentonas golpistas e parteiros de atos antidemocráticos. Gente assim precisa ser presa já, antes que aconteçam os crimes que não pretendem cometer.

 

Revista Oeste

















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