Jornalista Andrade Junior

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Fraternidades caiadas e kantianas

 Valdemar Munaro


Os textos das 'Campanhas da Fraternidade' (promovidas anualmente pela CNBB) produzem no leitor quaresmal, atento e sedento, mistos de tristeza e desolação. É mísera a teologia aí encontrada e parca a reflexão sobre os dramas e mistérios do pecado e da morte que ferem a vida humana, sobre o amor de Jesus aos que sofrem, sobre as iniquidades sombrias que afligem o coração dos fiéis, sobre o sangue e a graça de Cristo derramados na cruz.

As fraternidades divulgadas e prometidas por tais Campanhas têm caretas cristãs, mas são essencialmente caiadas e kantianas. Têm o perfil dos imperativos morais, em tudo semelhantes aos grimpados nas obras do prussiano, Immanuel Kant (1804).


Iluminista de carteirinha, este conhecido e rebuscado filósofo alemão dos tempos modernos, pretendeu encontrar na faculdade racional as inteiras credenciais da decência humana. Morreu (12 de fevereiro), ironicamente, atormentado por alucinações e amnésias.


A prática cristã, para Kant, equivale à vida ética. O Cristo de Nazaré é apenas um homem moral excelente, dispensável às súplicas e preceitos evangélicos. Segundo sua filosofia, o homem não precisa de alavancas sobrenaturais para melhorar e suplantar ações morais e capacidades cognoscitivas. A razão tem coordenadas e imperativos suficientes que o possibilitam ser bom e digno da coroa da justiça.


Numa carta dirigida a Lavater, em 28 de abril de 1775, escreveu: "em lugar de propor como essencial a doutrina religiosa prática do santo mestre (Lehrer), (os apóstolos) defenderam a veneração desse mestre e uma maneira de buscar favores por meio de bajulações e louvores". Em outras palavras, Kant entende que os apóstolos deturparam os fatos e as palavras de Cristo, transformando-o em divindade. Ao invés de absorverem seus ensinamentos morais, fizeram dele um ser divino.


Ora, essa conclusão kantiana tem uma ousadia intelectual malandra. Sorrateiro anticristão, Immanuel Kant, desdenhou simploriamente as notícias neotestamentárias narradas pelos evangelistas: palavras, discípulos, milagres, morte, paixão, ressurreição, humanidade e divindade de Jesus de Nazaré. Prevalecendo a interpretação epistemológica dada por ele, os fatos registrados nos Evangelhos são claramente deturpados.

Como diz o poeta Heirich Heine, nada mais avassalador e aniquilador. A 'imoral' desonestidade intelectual de Kant inviabiliza a sua pretensa moralidade filosófica. O seu sacana apriorismo crítico foi capaz de criticar tudo, exceto a própria criticidade.

Católicos e protestantes, gentes das academias, ainda o veneram, sem desfazer o fato que sua doutrina fere a verdade cristã. Com razão, tardiamente (11 de junho de 1827), o magistério da Igreja católica o considerou não apenas um agnóstico, mas também "um velado ateu e pai de ateus".

A linguagem kantiana, astutamente, não exclui elogios ao Nazareno, mas, como dissemos, o faz apenas para adornar e complementar sua pedagogia ética. Mesmo negando a divindade, Kant se utiliza das qualidades humanas de Jesus para corroborar seus ideais morais abstratos.

Em outras palavras, a ética kantiana, incapaz, por si mesma, de exemplificar ideais morais humanos inexistentes, toma a excelência moral de Cristo (que é divino) para amostragem e vitrine. O 'Santo do Evangelho', como o designa, não é, para Kant, modelo, Deus e mestre a ser seguido, imitado, amado e adorado, mas apenas 'excelência moral', empiricamente demonstrada, possível e acessível a todos os homens.

Para o kantismo, só a racionalidade libertada da 'menoridade' (exigência e tarefa imprescindíveis aos pensantes), pode ser ferramenta e porta de acesso à vida adulta, autônoma e livre do indivíduo.

Em outros termos, os ideais éticos, segundo a doutrina kantiana, enraizados na íntima estrutura racional humana, postulam, peremptoriamente, uma vida prática decente. Os próprios divinos mandamentos, aparentemente revelados, não passam de códigos nascidos do estuário racional no qual estão enraizadas as credenciais necessárias à perfeição moral. Ser eticamente bom (estágio correspondente à vida cristã), é cumprir o dever e a justiça, nível comportamental 'qualificado' e suficiente à vida humana.

O tesouro da razão, conforme Kant, contém deveres e ideais 'imperativos' a serem obedecidos. Eles nos bastam. Dispensam-se, portanto, santidades cristãs, autoridades externas, dogmas, dons ou suplementos extra racionais. Mestra e guia é somente a razão dentro da qual se deve permanecer, pois fora dela só há superstição e dogmatismo.

Como se vê, Kant amesquinha a vida cristã estreitando-a aos muros racionais e usa a fé unicamente como instrumento de ação pragmática. O efeito é devastador, pois propõe uma crença ficcional, isto é, uma fé em um Deus inexistente.

A doutrina racionalista kantiana, assim, não realiza apenas a proeza apocalíptica do 'nem frio, nem quente (3, 16) que, simultaneamente, amorna crentes e ateus, senão também cria rupturas metafísicas niilistas, de um Deus sem mundo e de um mundo sem Deus, de uma existência vazia de divino, de um divino vazio de existência.

Nenhuma outra época como a nossa experimentou, justamente, tristes avalanches de solidão e desespero, loucura e violência que aquelas premissas fomentaram. Que mundo seria o sem Deus? E que Deus seria o sem mundo? Se Ele não nos tivesse consigo, também não O teríamos conosco. Do mesmo modo, se planetas tresloucados ficassem indo e vindo elipticamente, sem eira, nem beira, sem origem e sem destino, exterminariam absolutamente o sentido e a razão de ser de nossa frágil existência.

O deicídio intelectual e moral no homem contemporâneo abriu, por consequência, comportas de psicopatias nunca vistas. Alucinantes e inimagináveis gritos de dessacralizados e sem esperança ecoam por todas as partes invocando amor e significado para o que fazem e vivem. Se Deus não estiver conosco, seremos apenas frangalhos de explosões ridículas e ocas do acaso.

Sabemos, porém, que não é assim. O agnóstico e sarcástico Voltaire (1778) entendeu bem que a negação absoluta de Deus inviabilizaria tudo, sobretudo a vida humana. Por isso saiu em defesa da sensatez dizendo: "Se Deus não existisse, teríamos que inventá-lo".

O estudioso Eric Voegelin, por sua vez, considerou que as serpentes nazistas e suas consanguíneas (comunismo, fascismo) só puderam eclodir seus ovos porque ninhos culturais alemães e europeus os chocaram fecundados por doenças 'pneumáticas'. As enfermidades espirituais, com efeito, infectam sobremaneira intelectuais sendo mil vezes mais perigosas que as do corpo.

Houve e há, como se vê, intelectuais seguidores de Kant. O célebre teólogo protestante, Rudolf Bultmann (1884 -1976), por exemplo, foi um deles. Sob feitiços kantianos que orientaram sua mente, produziu uma teologia que destrói a fé dos que têm Deus e o Deus dos que têm fé. Igual a Kant, postulou uma crença sem conteúdo, desvestida de história, fatos e presenças reais.

Pela lógica kantiana (e bultmanniana), qualquer pessoa poderá ser cristã sem precisar de Cristo já que o importante é a 'ideia', útil e eficaz do mesmo posta a serviço da ignição e da ação preferencialmente revolucionária.

Por este caminho somos conduzidos a esquizofrenias e catástrofes espirituais: fés esvaziadas da presença real de Cristo e presença real de Cristo inacessível ao coração humano. Se a racionalidade for a rainha do pedaço, a única a postular condições para haver encontro vivo e real com o Senhor, então a vida e a graça de Cristo nunca nos acontecerão. As vidas éticas estão sempre emaranhadas de teias racionais que condicionam o encontro e o acesso à Boa Nova de Jesus. Muitas vezes, porém, são a ruína do edifício cristão.

Vemos como os mecanismos éticos e teóricos kantianos fazem de Jesus um adorno moralista posto à disposição de catequeses e doutrinas 'fraternalistas'. Teólogos da libertação e seus agentes fazem o mesmo que fez Bultmann. Sob vestimentas aparentemente cristãs escondem corações e mentes não fixadas em Cristo, mas em ideais, preferencialmente socialistas e revolucionários, nos quais as fraternidades são imaginariamente dependuradas. Ali, na própria fraternidade imaginada, adornam o Cristo que por sua vez os adorna.

Das tentações de Jesus no deserto há a da fome e do pão (Campanha da Fraternidade, 2023). Cristo, faminto e solitário, é visitado pelo demônio que o instiga a solucionar o gigantesco problema da fome no 'canetaço': "Se és Filho de Deus, ordena que estas pedras se tornem pães" (Mt 4, 3).

Poder-se-ia quase dizer: 'Deus do céu! Por que não facilitar as coisas invertendo e reformulando a criação, fazendo o amor não ter renúncias, o pão não ter suor, os filhos não ter sacrifício, a liberdade não ter responsabilidade, a riqueza não ter trabalho?!'

Mas Jesus nos ilumina: "Não só de pão vive o homem". O Filho do Homem sabe que o pão necessário ao corpo, não é tudo o que precisamos, pois o entupido de pão não é capaz de partilhá-lo. Morre com ele.

A assustadora fome corporal que assola os homens, porém, não é pior que a morte. Saciados e bem nutridos, estão na iminência de morrer tanto quanto famintos. 'Farturas' de miséria se aproximam das 'misérias' de fartura e corpos bem nutridos podem se reunir apodrecidos aos mesmos túmulos dos mortos pela fome.

Quem nos assegura o 'vigor da uva', a vida, o pão e a fraternidade é o Crucificado Ressuscitado. Sem Ele, com Ele e por Ele nosso pão mofaria, nosso trigo caruncharia, nosso vinho vinagraria, nosso fermento azedaria, nosso azeite rançaria e nossa fraternidade seria afetação diplomática.

Famintos, pobres, doentes, decaídos, endividados, carentes de toda ordem, presas fáceis da 'compaixão' política e sociológica, normalmente afetada, são os primeiros a serem vistos e visitados por demônios que os quer sempre desvalidos, perpetuamente 'cativos' na duradoura dependência lhes dá guarida a caridades hipócritas. Vê-se que vulneráveis 'amam' benfeitores e benfeitores 'amam' vulneráveis exatamente na recíproca colaboração que apazigua e acalma consciências morais.

Evocando ideais que poderiam ser promovidos em qualquer lugar, tempo e religião, teólogos, bispos e assessores 'libertadores' proclamam Campanhas da Fraternidade encharcadas de síndromes kantianas temperadas de pelagianismo e romanticismo, teses exaltantes e exultantes de fraternidades fáceis e baratas. Pressupõem o amor cristão surgindo mágico de catequeses e conscientizações, decretos e propagandas, sermões e cânticos, textos e técnicas pastorais.

As moralidades kantianas uniram-se ao espírito revolucionário marxista pondo lenha no fogo 'teológico libertador' de metas sempre surrealistas. Infelizmente, ideais surrealistas produzem na alma dos próprios protagonistas, atitudes invertidas de hipocrisia e/ou rebeldia. O comunismo, por exemplo, é um ideal tão alto, tão excelso, só possível fora da face da terra. Nas condições humanas, porém, produz o efeito de transformar comunistas em hipócritas ou rebeldes já que a impossibilidade de ser vivido faz o vivente ser fingido ou revoltado. Fraternidades adornadas e fingidas sobram aos cântaros. Delas não precisamos.

'Comovidos' e 'comprometidos' com os famintos do Brasil, entre eles políticos e católicos moralistas de plantão (como Ackmin, Lula, Haddad e tutti quanti), não fossem fingidos teriam destinado vultoso dinheiro aos desabrigados de SP e nada aos desfiles e artistas da Sapucaí.

Onde está o 'amor fraterno petista' pelos milhões esfomeados brasileiros? Revelam-se tão perversos quanto parlamentares europeus socialistas, situados em Bruxelas, que se 'mostram' comovidos com os 'terremotados' turcos sem diminuir uma gota de suas benesses (pagos pela população) para ajudá-los. São portadores de amores e comoções vernizados num rosto 'cosmético' de hipocrisias e mentiras.

Muitos dos promotores das Campanhas da Fraternidade no Brasil apoiam governantes e políticos anticristãos, abortistas, ladrões, empenhados na liberação de drogas e do crime, dispensando-lhes salamaleques e favores.

Aos protagonistas e promotores de tais campanhas, os sedentos de fraternidade perguntam: "Onde morais? Mostrai-nos a fraternidade que ensinais e com quem a praticais para que também a possamos viver e saborear. Porém, se não tendes como no-la mostrar, se não tendes como no-la testemunhar, então, calai-vos! Vossos julgamentos, admoestações e mandamentos se assemelham 'aos sepulcros caiados: por fora parecem formosos, mas por dentro estão cheios de ossos, de cadáveres e de toda espécie de podridão. Por fora pareceis justos aos olhos dos homens, mas por dentro estais cheios de hipocrisia e de iniquidade. Serpentes! Raça de víboras! Como escapareis ao castigo do inferno?" (Mt 23, 27s).
*       Santa Maria, 24/02/2023

**     O autor, Dr. Valdemar Munaro, é professor de Filosofia.














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