por Loriane Comeli e Flavio Morgenstern
No país com o maior número de faculdades de Direito do mundo, algo que aparenta ser contraditório está se concretizando: o Brasil tem um Direito cada vez mais afastado das pessoas, encastelado em gabinetes em Brasília e, muitas vezes, injusto.
A ciência jurídica clássica vem sendo paulatinamente substituída pelas teorias ditas “críticas”: a crença de que juízes devam ignorar a lei e o desejo do povo para inventar um Direito ideológico de punho próprio. O discurso vem edulcorado em nome de “minorias” ou, como virou moda, promover a “pacificação social” ou mesmo corrigir a “tirania da maioria” — ou seja, quem foi eleito democraticamente pelo voto.
De mãos dadas a este movimento está uma mudança nos cursos de Direito: cada vez menos busca-se a letra da lei, preferindo-se estudar as decisões dos próprios juízes como encarnação suprema da própria democracia. Para entender a mudança no Direito brasileiro, precisamos observar o que acontece nas faculdades de Direito no país.
Menos leis, mas muitas “decisões”
Há muitas fontes do Direito escritas. Temos a legislação, as leis produzidas pelo Legislativo do país, dentro de determinada hierarquia, indo da Constituição às normas internas. Também existe a jurisprudência, ou seja, como os juízes julgaram casos semelhantes no passado. Importa também a doutrina — o que juristas escreveram sobre o tema em livros e artigos acadêmicos.
Há uma tendência no mundo, profundamente acentuada no Brasil, de ignorar cada vez mais a legislação e focar em outras fontes. Assim, juízes podem julgar casos não pelo que determina a lei, mas com base em “princípios” ideológicos, tais como causas sociais, ideologias políticas, uma suposta ameaça ou mesmo críticas feitas pela mídia. Em outras palavras, pela sua própria vontade, mesmo que vá contra a lei. É o chamado ativismo judicial, quando o juiz toma para si o papel de fazer a lei — e ele mesmo julgá-la.
O principal eixo de mudança é jogar o holofote do Direito na jurisprudência e menos na própria Constituição e nas leis. Há países que são extremamente sucintos em leis, como a Inglaterra e os Estados Unidos, e pródigos em decisões passadas tratadas com o peso de uma lei.
Há toda uma escola jurídica brasileira, capitaneada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, que visa a criar um Direito “à americana” no Brasil: ocorre que, nos Estados Unidos, a jurisprudência existe para manter a tradição do país e a coerência das decisões. Um Direito praticamente conservador. No Brasil, criam-se decisões sem leis a toque de caixa, sem nenhuma conexão com o povo ou as tradições nacionais, e a “jurisprudência” fica reduzida a apenas decisões recentes do Supremo.
Em entrevista a Oeste, a promotora Cláudia de Morais Piovezan pintou o quadro da situação do bacharel em Direito hoje no Brasil. “A sua formação se deu em termos de clichês como ‘democracia’, ‘Estado Democrático de Direito’, ‘justiça social’, ‘agente de transformação social’, ‘igualdade material’”, o que permite que a situação se perpetue.
Para o promotor Sandres Sponholz, do Ministério Público do Paraná, esse fenômeno já vinha acontecendo e se intensificou a partir de 2012, com o julgamento do Mensalão, o escandaloso esquema de compra de votos de parlamentares no governo petista de Luiz Inácio Lula da Silva. “O ponto de aceleração se deu a partir do julgamento do Mensalão; foi quando o Poder Judiciário percebeu seu poder de interferência na sociedade”, afirma o promotor.
O Direito não é uma ciência exata e sempre haverá divergências. Mas o problema é a imposição de uma visão única, e justamente uma visão que ignora a lei. Sponholz considera-se a favor de debater ideias marxistas, mas “o problema é que existe um monólogo no meio acadêmico, porque não se permite que sejam debatidas ideias contrárias a essa visão marxista”.
Cada vez mais, cursos jurídicos formam alunos com base em teses focadas em minorias, favoráveis aos criminosos e sem respeito à legislação
A visão única, que impõe a relativização até mesmo dos conceitos jurídicos mais básicos, base das novas teorias, “acabou invadindo o meio acadêmico e criando uma espécie de confusão ou instabilidade”, segundo o ex-professor, que deu aulas de Direito por dez anos, mas acabou se afastando da profissão pelo isolamento que sofreu ao defender o ensino do Direito clássico.
“Isso é um desastre. O efeito de afastar alguns dos mais sólidos fundamentos do Direito brasileiro é devastador no ensino jurídico”, analisa Marcelo Rocha Monteiro, professor de Direito Processual Penal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e procurador de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ).
Os exemplos de decisões fundamentadas nessas novas correntes teóricas, que afrontam o que está estabelecido na Constituição Federal e na legislação, são inúmeros e “impossíveis de explicar aos alunos”, diz Monteiro. “Ensino o Direito, e não o que o Supremo está decidindo neste momento”, enfatiza, referindo-se à incoerência com a lei e à composição transitória do Supremo.
Ao lado dos vários inquéritos instaurados de forma ilegal para apurar supostas ameaças contra ministros, supostas fake news e as chamadas “milícias digitais”, tratadas como fato consumado — e inexistentes no Direito —, uma das “maiores aberrações jurídicas” foi a decisão de 2019 que criou o “crime” de homofobia, fazendo uma analogia com o crime de racismo. “Qualquer estudante de Direito do 1° ano sabe que os crimes, com suas respectivas penas, só podem ser criados por lei”, afirma o procurador. Trata-se do princípio da reserva legal, adotado em todos os países civilizados do mundo: não há crime sem lei anterior que o defina e não há pena sem prévia cominação legal. Está assim, literalmente, no artigo 1º do Código Penal.
“Você não pode criar crime por analogia em decisão judicial”, esclarece o procurador do MPRJ. E quem cria o tipo penal é o Legislativo, e não o Judiciário. “Já há muitos profissionais sendo formados com essa mentalidade distorcida, de que os fins justificam os meios”, explica Monteiro, lembrando que o Direito existe, justamente, para que os fins não justifiquem os meios. “Se os fins justificassem os meios, o linchamento de criminosos seria válido”, diz Monteiro. “Pensam: ‘Eu sei que é inconstitucional, sei que não fui eleito para a função, mas é para um bem maior. Então vou violar a lei’. O fim nobre justifica o meio ilegal.”
Outro exemplo de difícil explicação — e são muitos — foi quando o ministro do STF Edson Fachin decidiu que a Polícia Militar do Rio de Janeiro não poderia fazer operações em favelas durante a pandemia. Mais uma vez, não se trata do mérito — avaliar se a decisão é boa ou ruim. Monteiro faz um exercício de imaginação: “E se fosse o contrário: e se o Supremo ordenasse que a polícia realizasse o dobro de operações? Eu seria o primeiro a criticar, porque não é uma decisão que cabe ao Judiciário. Quem tem de decidir quantas operações e quando é o governador do Rio de Janeiro, que foi eleito para isso”. O motivo disso é simples e previsto nas regras democráticas: se a população não estiver gostando das decisões, não (re)elege o governador. “Mas, se essa decisão vem do ministro Edson Fachin, que tipo de controle o povo tem sobre ele?”, questiona o procurador de Justiça.
Por mais que sejam decisões ilegais, acabam virando jurisprudência. Outros juízes passam a adotar esses entendimentos, como a juíza da 4ª Vara Criminal de São Paulo, que condenou o apresentador Gilberto Barros a dois anos de prisão pelo “crime” de homofobia. Mesmo criticando a conduta preconceituosa, Monteiro vê risco na possibilidade de prisão por “princípios” pessoais de juízes: “É uma ameaça seriíssima ao direito à liberdade: um crime inventado pelo Supremo, criado sem lei”.
A “legislação por jurisprudência” ocorre quase sempre em temas caros à esquerda, mas com pouco apelo popular, como a permissão do casamento de homossexuais, o aborto de fetos anencéfalos e a proibição do uso de algemas. Todos acabaram entrando no “rol das leis” por decisões do STF e são tratados com o mesmo peso de uma lei amplamente debatida na sociedade e respeitando a vontade da maioria.
Concursos exigem que se conheçam as decisões
As decisões repetidas sobre um mesmo tema formam a jurisprudência e passam a ser estudadas nas faculdades e nos cursos preparatórios para concursos de juízes, promotores e outros cargos públicos. Levantamento feito por Oeste sobre as provas aplicadas pela Fundação para o Vestibular da Universidade Estadual Paulista (Vunesp) para contratação de juízes pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo demonstra que, na mais recente prova, em 2021, 18 das cem questões objetivas faziam referência expressa a decisões dos Tribunais Superiores.
O próprio edital menciona que poderão ser objeto das provas “jurisprudência pacificada e as súmulas dos Tribunais Superiores”. Entre 2002 e 2012, a referência a decisões jurisprudenciais era nula ou muito rara. “Aí entra o fenômeno dos cursinhos preparatórios e da mudança de perfil dos doutrinadores”, lembra Marcelo Rocha Monteiro. “Com um viés mercadológico, deixaram de ser intérpretes do Direito e passaram a ser replicadores destas decisões judiciais que quebram a natureza, a estrutura e a finalidade do Direito.”
Há dez ou 15 anos, diz ele, a doutrina era baseada nos estudos clássicos e conferia maior estabilidade aos conceitos jurídicos. “É importante que os bons professores, que os bons examinadores dos concursos continuem se atendo ao bom Direito, porque senão a Constituição Federal não vale nada, a legislação não vale nada, e a gente vai passar a ser governado pelos ministros do Supremo”, alerta Monteiro.
O garantismo das Cortes Superiores
Enquanto o STF cria crimes por lei, instaura inquéritos ilegais e manda prender críticos e opositores por emitirem opiniões, o garantismo penal ganha força na defesa de outros tipos de crimes. Segundo teóricos do Direito, essa corrente jurídica prega o respeito aos direitos fundamentais e às garantias processuais, para evitar arbitrariedades e proteger os indivíduos e os réus. Na prática, a tese defende uma interpretação das leis mais favorável aos criminosos.
O garantismo se verifica, por exemplo, em recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ). A Corte considerou ilegal a busca policial sem mandado judicial, motivada pela impressão subjetiva da polícia sobre uma atitude suspeita do indivíduo. Também é do STJ o entendimento de relativizar a prisão em flagrante: se for feita no domicílio do investigado, e não ficar demonstrado que deu autorização para a entrada do policial, poderá ser anulada. “Essas decisões praticamente acabam com o trabalho do policial”, constata Sponholz.
Monteiro aponta para a ironia da situação: juristas defensores do garantismo penal e que também seguem a corrente contra-majoritária do Supremo “estão numa situação de constrangimento”, porque sabem que as decisões do STF — como criar crime por decisão judicial — não são defensáveis do ponto de vista jurídico. “É difícil defender um absurdo desses até mesmo para aqueles alinhados com essa visão mais esquerdista.”
Um viés coletivista
Um terceiro viés do ensino jurídico repousa numa visão mais coletivista. Para o promotor Sponholz, antes da “revolução no Direito”, havia um contexto de estabilidade do ensino jurídico, e o profissional saía do curso superior com a ideia clara de que o indivíduo é sujeito de Direito. “Hoje nós percebemos que o bacharel sai da universidade com a visão de que a coletividade é sujeito de Direito”, compara.
Com esta guinada, direitos fundamentais, como a liberdade de expressão e de pensamento, estão sendo relativizados e até mesmo suprimidos. O ativismo judicial, sem representatividade e criando “leis” impopulares, está no epicentro da crise entre os Poderes, apagando a credibilidade e o apoio popular que as instituições até há pouco recebiam.
Coerente com a postura autoritária do próprio ativismo, os membros de Cortes Superiores reagem com mais restrições à liberdade. “O resultado é o oposto da pacificação social: estamos diante de uma sociedade hoje que tem medo do exercício da liberdade de expressão, medo de manifestar o livre pensamento, que sofre os efeitos de uma priorização de determinados segmentos baseados em gênero, raça e opção religiosa”, finaliza Sponholz.
Sempre foi ensinado nos cursos jurídicos que a Constituição é a Lei Maior, e que todas as demais leis devem obediência a ela. Não é o que se tem visto na prática. Ainda que nossa Constituição Federal tenha falhas, sem respeito à hierarquia legal e às normas preestabelecidas, a sociedade fica refém de um Direito sem lei e dependente de profissionais que se julgam com poder para criar seus próprios códigos e fontes jurídicas em nome de uma “justiça social”, seja lá o que isso signifique.
Revista Oeste
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