por Ana Paula Henkel
Estamos diante de situações e escolhas políticas que podem preservar ou enterrar a luta e o legado que nos deixaram para que continuássemos figthing the good fight
Durante alguns anos na década de 1960, muitos críticos e até fãs pensaram que a carreira musical de Elvis Presley estava decaindo, pois, depois de anos de absoluto sucesso com seu vasto repertório e shows, suas músicas se tornaram principalmente gravações de trilhas sonoras para os filmes em que ele aparecia. No entanto, a criação da música “If I Can Dream” marcou o renascimento de sua carreira depois da espetacular e tocante performance do ícone do rock para o especial de Natal da NBC de 1968.
A América estava no meio de um caos político-social em 1968. O movimento dos Direitos Civis tomava conta das ruas e a cultura norte-americana mudava a passos largos. Naquele ano, e dentro de um curto espaço de tempo, dois líderes de movimentos políticos e sociais foram assassinados. Martin Luther King Jr foi assassinado em 4 de abril de 1968, em Memphis, cidade natal de Elvis; e Robert Kennedy, senador dos EUA que apoiava fortemente os direitos humanos e a (real) justiça social, foi morto dois meses depois, em 6 de junho.
Com apenas 39 anos na época, King havia, nos oito anos que antecederam sua trágica morte, transformado o movimento americano pelos direitos civis. Ele havia ser tornado um símbolo nacional que inspirou pessoas de todo o espectro social a transformarem injustiças econômicas e raciais por todo o país. Como ativista social, o grande momento de King aconteceu em agosto de 1963, quando ajudou a organizar a Marcha em Washington, quando mais de 250 mil pessoas se reuniram em frente ao Lincoln Memorial para protestar contra a segregação racial, e King fez seu famoso discurso “I Have a Dream”.
Nos meses que se seguiram ao histórico discurso, membros mais jovens e militantes do movimento pelos direitos civis ficaram cada vez mais frustrados com a cautela de King e seu compromisso com a resistência não violenta, mas King continuou firme acreditando em sua caminhada pacífica para atingir o que acreditava. Após seu assassinato, milhões de pessoas prestaram homenagem à sua coragem, à sua eloquência e à sua determinação. Elvis Presley foi uma dessas pessoas. Presley era apenas seis anos mais novo que King, e ambos nasceram e cresceram no extremo sul dos Estados Unidos, King na Geórgia e Elvis no Mississippi, onde foram cercados por racismo e leis segregacionistas.
Presley não pôde comparecer pessoalmente ao funeral de Dr. King, como era chamado, por estar envolvido nas filmagens de “Live a Little, Love a Little”, um de seus muitos filmes. Mas, de acordo com sua coestrela Celeste Yarnall, ela e Elvis assistiram ao funeral de Martin Luther King Jr. em seu trailer, e Yarnall contou mais tarde que Elvis chorou copiosamente. Algumas semanas depois, Elvis começou a trabalhar no programa de TV de uma hora, amplamente conhecido hoje como o famoso ’68 Comeback Special. Filmado em junho de 1968 e exibido em dezembro, o show foi originalmente programado para terminar com Elvis cantando “I’ll Be Home for Christmas”, um clássico natalino norte-americano. O plano de finalizar com essa canção foi, entusiasticamente, endossado por seu empresário, o coronel Tom Parker.
Depois de ver as notícias sobre a morte de Kennedy na TV, Elvis passou uma noite inteira com o diretor do especial de Natal, Steve Binder, e seus amigos, falando sobre as mortes e os desejos de Elvis para o mundo. A conversa foi sincera e honesta sobre os caminhos políticos que afetavam — de fato — a sociedade norte-americana, algo bem diferente da prostituição artística disfarçada de mensagens políticas dos dias de hoje. Binder percebeu que Elvis estava profundamente tocado com as tragédias e que tinha em seu coração uma mensagem importante, algo profundo, para dizer ao país. O problema para entregar o sentimento de Elvis pairava no fato de que estavam gravando um especial de Natal, um show que deveria falar de bons sentimentos, de paz e harmonia; não de política e tragédias.
Mas Binder estava impressionado com a conversa com Elvis e a maneira como Elvis externou sua indignação e sua tristeza com os eventos. Ele decidiu então ir até o diretor musical do programa, Billy Goldenberg, e o compositor Earl Brown e contar sobre a conversa de horas com Elvis e como ele estava abalado não apenas com as mortes de King e Kennedy, mas com o desenho do cenário de violência que a sociedade norte-americana testemunhava. Binder pediu que Goldenberg escrevesse uma música para substituir “I’ll Be Home for Christmas” como o grand finale de Elvis do especial de Natal do canal NBC — que acabou marcando a sólida volta do Rei do Rock aos palcos e aos holofotes. Binder queria uma música poderosa e significativa que encerrasse o especial de TV. Sabendo do apreço e do carinho de Presley por Martin Luther King Jr. e de sua profunda tristeza pelo recente assassinato do ativista negro em Memphis, Goldberg e Brown escreveram “If I Can Dream” com Presley em mente, uma canção inspirada pela dor explícita de Elvis e pelo histórico discurso de 1963 de Martin Luther Dr. King “I Have a Dream”.
Quando Tom Parker ouviu a música como demonstrada por Earl Brown, ele disse enfaticamente que aquela canção não era “o tipo de música de Elvis”. No entanto, à luz do assassinato de King e em seguida Kennedy, Elvis se recusou a finalizar o especial com “apenas mais uma canção de Natal”. Ele queria concluir o ano com uma música que refletisse sua profunda tristeza pela disputa racial e política que dividia o país, mas trazer algo do legado de King. Depois que Presley ouviu a demo da música, ele desafiou seu empresário e disse que ia gravar a música de qualquer maneira. Então, em 23 de junho de 1968, Elvis gravou “If I Can Dream”. O rei do rock cantou de maneira tão poderosa que alguns membros da banda — impressionados com a entrega de Elvis — tiveram de fazer várias regravações de arranjos para tentar acompanhar a espetacular entrega do ícone.
Foi depois que a banda e os cantores de apoio foram mandados para casa que Elvis fez uma performance ainda mais surpreendente ao regravar seus vocais. Elvis apagou as luzes e se entregou à música. Em alguns takes, ele caiu de joelhos no chão, entregando-se completamente aos sentimentos. Depois dessas tomadas, Elvis foi para a sala de edição, assistiu às tomadas repetidas vezes e escolheu sua versão. Ele ficou tão emocionado com a música e sua experiência que disse a Binder: “Nunca mais vou cantar outra música na qual não acredite. Nunca mais vou fazer outro filme em que não acredite”. Brown disse a ele que viu lágrimas escorrendo pelo rosto de três cantores de apoio e que um dos cantores lhe disse: “Elvis nunca cantou com essa emoção antes. Ele quis dizer cada palavra”.
If I Can Dream – Se Eu Posso Sonhar
There must be lights burning brighter somewhere
Deve haver luzes reluzindo mais brilhantes em algum lugar
Got to be birds flying higher in a sky more blue
Deve haver pássaros voando mais alto em um céu mais azul
If I can dream of a better land
Se eu posso sonhar com uma terra melhor
Where all my brothers walk hand in hand
Onde todos os meus irmãos andam de mãos dadas
Tell me why, oh why, oh why can’t my dream come true?
Diga-me por que, oh por que, oh por que meu sonho não pode se tornar realidade?
There must be peace and understanding sometime
Deve haver paz e compreensão em algum momento
Strong winds of promise that will blow away
Fortes ventos de promessa que vão soprar
All the doubt and fear
Toda a dúvida e medo
If I can dream of a warmer sun
Se eu posso sonhar com um sol mais caloroso
Where hope keeps shining on everyone
Onde a esperança continua brilhando em todos
Tell me why, oh why, oh why won’t that sun appear?
Diga-me por que, oh por que, oh por que esse sol não aparece?
We’re lost in a cloud
Estamos perdidos em uma nuvem
With too much rain
Com muita chuva
We’re trapped in a world
Estamos presos em um mundo
That’s troubled with pain
Que está incomodado com a dor
But as long as a man
Mas enquanto um homem
Has the strength to dream
Tem força para sonhar
He can redeem his soul and fly
Ele pode redimir sua alma e voar
Deep in my heart there’s a trembling question
No fundo do meu coração há uma pergunta trêmula
Still I am sure that the answer gonna come somehow
Ainda tenho certeza de que a resposta virá de alguma forma
Out there in the dark, there’s a beckoning candle
Lá fora, no escuro, há uma vela brilhando
And while I can think, while I can talk
E enquanto eu posso pensar, enquanto eu posso falar
While I can stand, while I can walk
Enquanto eu posso ficar de pé, enquanto eu posso andar
While I can dream, please let my dream
Enquanto eu posso sonhar, por favor, deixe que meu sonho
Come true, right now
Torne-se realidade, agora
Let it come true right now
Deixe isso se tornar realidade agora
A semelhança da canção com a fala de Martin Luther King está tanto na forma quanto no conteúdo do texto e, para a edição de hoje, dois dias antes de uma eleição histórica para o Brasil e para o nosso futuro, eu não poderia deixar de trazer um sopro de esperança: o sentido da música consiste justamente no desejo de um mundo melhor, um mundo onde se possa viver em paz e harmonia, onde a dor possa ser transformada em serenidade. Um mundo ideal que pode ser alcançado pela força de cada homem que se recusar em abandonar o desejo de caminhos melhores, e que não desistirá desta difícil empreitada.
É claro que as situações históricas são diferentes. E, sinceramente, não temos sequer o direito de comparar o que homens do passado fizeram, como aqueles que entregaram suas vidas em guerras por nossa liberdade, ou o Dr. King, que lutou bravamente por um mundo mais justo — onde as pessoas devem ser julgadas pelo seu caráter, e não pela cor da sua pele. Nossas ações não chegam perto do que esses homens passaram; mas estamos aqui, diante de situações e escolhas políticas que podem preservar ou enterrar a luta e o legado que eles nos deixaram para que continuássemos figthing the good fight.
Confrontado em 1963 com intolerância, violência armada e brutalidade policial, Martin Luther King estava convencido em seu discurso de que “de alguma forma essa situação pode e será mudada” e que “meus quatro filhos pequenos um dia viverão em uma nação onde não serão julgados pela cor de sua pele, mas pelo conteúdo de seu caráter”. Elvis canta implorando por essa confiança e afirma que tem “certeza de que as respostas virão de alguma forma”.
King em seu discurso não negou “as dificuldades de hoje e de amanhã”, mas teve a coragem de imaginar um mundo melhor apesar delas, e já havia explicitado as mudanças culturais, legais e morais que precisavam ocorrer para que pudéssemos criar esse mundo. Em resposta, Elvis canta a mais urgente de todas as perguntas. Se o exemplo de King nos permite “sonhar com uma terra melhor”, e se nós e milhões de outras pessoas acreditam nesse mesmo sonho, “por que, por que, por que meu sonho não pode se tornar realidade?”.
Martin Luther King Jr. nos incentivou a sonhar. Após seu assassinato, Elvis canta que ainda possamos sonhar. Que levemos as palavras de Martin Luther King Jr para nossas reflexões e decisões neste fim de semana. Há dezenas e dezenas de frases espetaculares de King incrustadas em seus históricos discursos: “O que me preocupa não é nem o grito dos corruptos, dos violentos, dos desonestos, dos sem caráter, dos sem ética. O que me preocupa não é o grito dos maus. O que me preocupa é o silêncio dos bons”.
A letra de Brown é uma reação apaixonada à devastadora notícia da morte de King, mas é o que Elvis faz com essa letra que transforma “If I Can Dream” no que é: um dos tributos mais comoventes já pagos à bravura de homens e mulheres que ousaram desafiar as foças do mal e trabalhar por um mundo para melhor. E esses homens e mulheres não precisam estar diante de multidões para fazer toda a diferença. Se eles puderam sonhar, nós também podemos.
Revista Oeste
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