Olavo de Carvalho
Uma devastadora análise sobre o último líder da era soviética, que morreu recentemente aos 91 anos
Em 15 de dezembro de 1987, em plena Perestroika, Mikhail Gorbachov anunciou um dos pontos fundamentais do seu plano para um novo mundo de paz e liberdade: "Não pode haver trégua na luta contra a religião. Enquanto existir religião, o comunismo não prevalecerá. Devemos intensificar a destruição de todas as religiões onde quer que elas sejam praticadas ou ensinadas."
Gorbachov era e é um marxista puro-sangue, mas, àquela altura, já não pensava em implantar em escala planetária o comunismo ortodoxo, cuja inviabilidade saltava aos olhos. O que ele tinha em mente era a "convergência" dos regimes, um socialismo meia-bomba no qual, preservada alguma liberdade econômica indispensável à sobrevivência do sistema, todas as demais liberdades fossem esmagadas sob uma portentosa engenharia de dispositivos jurídicos, sociais e culturais, já não sob a direção ostensiva do partido único, mas de um pool de organizações esquerdistas concordes no essencial. O livre mercado seria mantido, mas como instrumento para subsidiar a destruição da "democracia burguesa". O empresariado sonso cederia de bom grado em tudo para preservar o seu querido direito de enriquecer, sem se dar conta de que na nova regra do jogo a riqueza seria cada vez menos uma fonte de poder e sim um handicap, calculado para subjugar seu detentor às exigências do Estado. Encapsulada na vitória temporária do capitalismo, a ascensão do socialismo já não se faria por meio da revolução e sim do acúmulo progressivo e indolor de controles burocráticos, exigidos por "movimentos populares" artificialmente criados para esse fim e subsidiados, a seu turno, por uma horda de novos e antigos ricos, movidos pela esperança insensata de aplacar com generosidades obscenas de donzela oferecida a voracidade do Estado-papão. Inspirada em Gramsci e no socialismo fabiano cujo gradualismo anestésico tinha por símbolo uma tartaruga, a estratégia permanecia fiel à máxima leninista de usar o imediatismo da burguesia como instrumento para desprovê-la de seus meios de defesa.
Esse sistema já está em avançado estado de implantação em todo o mundo. A administração central do planeta, sediada em organismos internacionais como a ONU e a União Européia, que o próprio Gorbachov qualificou de "novo Comintern", já não controla somente a atividade econômica e trabalhista das nações, nem somente a estratégia militar e geopolítica — fazendo da "soberania" uma curiosidade museológica –, mas cada detalhe da educação, da prática médica, da vida cultural e até das condutas pessoais, submetidas cada vez mais a regulamentações sufocantes que a sociedade civil, estupidificada pela tagarelice de ONGs histéricas, celebra como conquistas da liberdade e dos direitos humanos.
Nesse quadro, a luta contra a religião só se empreende pelo antigo método da repressão direta nas regiões mais distantes da atenção da mídia: Sudão, Vietnã, Coréia do Norte, boa parte da China. No mundo Ocidental, são usadas para isso a militância "politicamente correta" e a própria mídia, que, com notável sucesso, vêm expelindo a religião da vida pública, do sistema educacional e da cultura superior, sob o pretexto risível dos "direitos das minorias", como se, eliminada com a fé predominante a idéia mesma de religião, fosse sobrar para os cultos minoritários um espaço maior na sociedade e não um lugarzinho apertado no sepulcro geral das devoções extintas.
Resistência séria ao neo-socialismo mundial só há em dois países: EUA e Israel. Daí que uma campanha mundial de desinformação busque apresentá-los com imagem invertida, como se fossem os centros de comando e não os principais alvos do ataque global às soberanias. A quantidade de recursos mobilizada para esse fim é tão gigantesca, tão vasta e complexa a constelação de artifícios usada para ludibriar a opinião pública, que atinar com o curso efetivo dos acontecimentos está acima da capacidade do cidadão médio e mesmo do "intelectual" médio. Dificilmente a presente geração chegará a perceber a realidade da situação histórica que viveu. O mundo de Gorbachov é o mundo da inconsciência planificada.
* Mikhail Sergeevitch Gorbatchov foi o último líder soviético. Faleceu em 30 de agosto deste ano.
** Olavo de Carvalho publicou este artigo fundamental em 19 de junho de 2004
publicadaemhttps://www.puggina.org/outros-autores-artigo/o-mundo-de-gorbachov__17814
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