Jornalista Andrade Junior

quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

'Se Olavo tivesse sido assassinado, sua morte seria comemorada do mesmo jeito',

 por Bruna Frascolla


“Menos um entrave ao crescimento espiritual da humanidade no mundo; menos um inimigo da democracia; menos um inimigo da diversidade humana; menos um inimigo da verdade; menos um inimigo da justiça.” Esta declaração foi feita por Jean Wyllys após a morte de Olavo de Carvalho. Foi uma morte de causas naturais. Mas o que chama a atenção nessa declaração é que ela poderia ter sido feita após a execução de um dissidente. Inclusive a interjeição “menos um!”, em todo o território nacional, costuma ser usada para se referir a mortes violentas de bandidos. É claro, é óbvio, é ululante, para qualquer um neste país e até no Ocidente como um todo (desde que se acrescente a informação de que Jean Wyllys é um militante gay), que Jean Wyllys não será tratado como o radical intolerante que é. 

Se fosse, porém, um olavete a escrever as linhas acima após a morte de Marielle Franco, a coisa seria completamente diferente. Na certa, o olavete seria tratado como “milícia digital” e correria o risco de ir preso em função dessas declarações, sem o devido processo legal. Afinal, há um Inquérito do Fim do Mundo em andamento, prendendo as pessoas suspeitas de serem contrárias à democracia e favoráveis ao ódio. O que torna a coisa mais estranha ainda é que, de fato, alguém que se autodeclarava de direita realmente criou e espalhou um boato sobre Marielle quando o corpo nem bem esfriara. Esse alguém é Carlos Afonso, conhecido pelo pseudônimo Luciano Ayan. Ele criou a notícia falsa de que Marielle seria amante de um traficante, e a autoria desse malfeito foi bem divulgada pela imprensa comum. Não obstante, Carlos Afonso passou incólume pelo Inquérito do Fim do Mundo e ainda subsidiou os perseguidores com uma lista macartista de influenciadores digitais de direita olavete, bolsonarista e até liberal. Agora, pupilas suas pretendem se vender como campeãs no combate ao radicalismo e às fake news, sem terem rompido política ou ideologicamente com Ayan, nem mencionando seu envolvimento na disseminação de uma boatos que desumanizam o oponente. (Escrevi com mais detalhes sobre o assunto de Ayan com as fake news aqui.)


Ódio é humano

Há um problema com a expressão “discurso de ódio”. O ódio é um sentimento humano. Todos sentimos ódio por alguma coisa ou por alguém em algum momento da vida. Posso dizer que sinto ódio pelo identitarismo, e que algumas pessoas me despertam ódio. A pessoa do meu governador me desperta ódio, por exemplo, quando me impede de tirar documentos por não ter um passaporte sanitário. Me despertam ódio as autoridades que querem deixar sem os filhos os pais que não fizerem deles cobaias da Pfizer.

Há uma distância entre sentir ódio por alguém e fazer um discurso pessoal contra esse alguém. Há, abaixo disso, uma distinção entre vida privada, na qual odeio os outros, e vida pública, na qual expresso meus pensamentos. A distinção entre vida pública e privada não convém a totalitários. As coisas têm de se passar como se tudo estivesse sempre às claras; como se cada um de nós fosse um ser unidimensional que coubesse em slogans públicos. Tudo é político, nada é privado.

Pois bem: eu sinto ódio, o leitor sente ódio. O que interessa, na vida pública, é a nossa conduta. Embora odeie a pessoa de Rui Costa em função de suas ações como governador, eu consideraria uma baixeza um libelo feito em público contra a pessoa de Rui Costa. Consideraria uma baixeza inventarem que ele é amante de traficante. O que eu faço contra Rui Costa é escrever contra as suas medidas de homem público. Isso é de interesse público, e ao leitor não interessa, ou não deveria interessar, os meus sentimentos privados quanto à pessoa de Rui Costa. Ele poderia não me despertar sentimento nenhum, e os argumentos contra a medida seriam os mesmos.

Já que gostam tanto de chamar os outros de nazistas, voltemos à Alemanha de Hitler. Os alemães não sabiam de campos de extermínio, mas sabiam da estigmatização de judeus e da proibição de exercer certas profissões. Um homem que fizesse tal coisa me despertaria ódio, fosse eu uma judia ou não. Creio que as pessoas decentes (na Alemanha de então, uma minoria) sentiriam ódio também.

O ódio não é uma coisa ruim em si mesma. É um sentimento que pode surgir pelas mais variadas razões, algumas das quais urgentes e legítimas.


A desumanização é o problema

É verdade que os nazistas odiavam os judeus. E é verdade que os opositores dos nazistas odiavam os nazistas. O ódio não é o problema; o ódio pode ser o sentimento humano esperado de pessoas decentes.

O que os nazistas faziam de especial com os judeus é tratá-los como sub-humanos, Untermenschen. Ser um Ubermensch (super-homem) poderia ser um projeto futuro para os nazistas, mas eles eram superiores aos sub-humanos desde já. Um sub-humano poderia ser estigmatizado publicamente, poderia ser privado do seu trabalho, poderia ser, enfim, assassinado. Quando morresse, assassinado ou não, um espírito de porco poderia dizer: “Menos um entrave ao crescimento espiritual do Povo; menos um inimigo do Reich; menos um inimigo da saúde do Povo; menos um inimigo da verdade; menos um inimigo da justiça.” Não interessa a forma como a pessoa morreu (se doente ou executada), não interessam as ações privadas dessa pessoa (se era um homem bom a despeito de opiniões extravagantes). Interessa a aniquilação daquele que está marcado como sub-humano.

Para nos opormos ao totalitarismo, precisamos prestar atenção ao discurso que promove a desumanização do outro. Isso de “discurso de ódio” é conversa fiada de big tech. Todo mundo odeia; só quem se sente superior (Ubermensch, super-homem) finge que não.


Maltratam velhos doentes

Se Olavo não tivesse morrido de causas naturais, sua morte teria sido comemorada do mesmo jeito. É fácil de provar isso com a famosa coluna de Hélio Schwartzman na Folha: filosofando muito, e sem deixar de estender o mindinho enquanto segura uma xícara de chá, um homem fino pode concluir que é melhor Jair Bolsonaro morrer do que viver. Hélio rima com Adélio.

Mas o próprio Olavo dá mostras disso. Cito Paulo Polzonoff, que escreveu a respeito à época: “O filósofo, tratado com deboche pelo termo 'guru do bolsonarismo', saiu do Brasil às pressas, depois de passar muito tempo internado e depois de ser intimado pela Polícia Federal no inquérito ilegal que apura a existência de (respire fundo, porque as palavras a seguir fedem) uma milícia digital que atua para desacreditar a democracia e as instituições brasileiras. A notícia da fuga para o exílio nos Estados Unidos deixou a esquerda hipócrita em polvorosa. Houve quem chamasse Olavo de Carvalho de covarde por se recusar a prestar depoimento num inquérito ilegal. Será que chamariam Brizola, FHC ou Chico Buarque de covardes? Será que diriam que eles 'não aguentaram o tranco da ditadura'?” A solidariedade é nula. Se levassem um velho doente à cadeia por crime de opinião e ele morresse lá, quem acha que haveria solidariedade? Jean Wyllys diria “menos um” do mesmo jeito.

E se Roberto Jefferson morrer, também dirá “menos um”. Porque nossos bem-pensantes super empáticos andam encarcerando velhos doentes que não fazem mal a ninguém. O ladrão e o assassino merecem direitos humanos; o “extremista”, não. Se alguém for considerado extremista, tudo é permitido contra si. Chamar de extremista é o pretexto da vez para desumanizar os outros.


Gazeta do Povo












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