por Caio Coppolla
“Folheando” esta revista, deparei com uma lista curiosa de manifestações odientas ao recém-falecido Olavo de Carvalho. Tão logo pousei os olhos em tamanho rancor, imaginei o prazer intelectual do filósofo, estivesse ele acompanhando a reação à sua morte. Primeiro, por vencer, mais uma vez, a indiferença que castiga a maioria daqueles que já pisaram nesta Terra; segundo, por atestar a acuidade da sua descrição e crítica às contradições da esquerda e, especialmente, à paralaxe cognitiva. Mas, antes de explorar esse conceito e seus exemplos, que tal um pouco de ódio do bem, cortesia da nossa empática intelligentsia?
José de Abreu, ator(mentado): “Morreu o pai do bolsonarismo. Falta o filho”. — Citação elencada em posição de destaque pela proeza de celebrar a morte de um e desejar a morte de outro em menos de 50 caracteres;
Gregório Duvivier, ator (risos), escritor (muitos risos) e humorista (poucos risos): “Morreu de estupidez e levou muita gente junto”. — Ah, claro, assassinou multidões com suas palavras e opiniões!;
Jean Wyllys, ex-BBB, ex-político e exilado (por iniciativa própria): “Esse mentiroso, difamador sórdido, morreu me devendo reparação pelos danos materiais e morais que me causou. É festejar que esse monstro tenha desaparecido do planeta”. — Entendemos a preocupação financeira e a mesquinhez do ex-deputado ressentido, afinal ele celebra a vida — ou melhor, a morte — em euros;
Coluna publicada pela revista Veja: “…o negacionismo ao qual ele se aferrou […] ajudou a cavar sua própria sepultura. Literalmente”. – Revelou o jornalista com convicção, contrariando nota oficial do médico particular do paciente;
Coluna publicada pela Folha de S.Paulo: “…acho a morte de uma girafa mais importante que a de Olavo de Carvalho”. — Sério!? Então onde estão seus artigos publicados sobre mortes de girafas?
“As girafas, assim como os lêmures e os gnus, não discutem o óbvio. […] Além disso, raras girafas fumam cinco maços de cigarros por dia”. — Some-se a isso o fato de que muitas girafas são mais humanas que o articulista da Folha, que, na mesma coluna, se esforçou e conseguiu bater o próprio recorde: “Olavo de Carvalho, que morreu nos EUA, foi enterrado às pressas […]. Imagine se Jair Bolsonaro o trouxesse para enterrá-lo aqui, com honras de Estado. Seria uma profanação dos cemitérios brasileiros, onde estão tantos que ele e Bolsonaro ajudaram a matar”. — Que estratégia inovadora! Culpar o governo e os mortos pelas tragédias do país, com direito a acusação de “assistência ao genocídio”.
As citações elencadas expõem o caráter de seus autores e veículos, que não hesitam em agredir os mortos quando isso lhes soa politicamente conveniente. Por outro lado, ignorando as próprias palavras ofensivas e atitudes extremistas, condenam a polarização, pregam o diálogo e posam de democratas sensatos — parafraseando Milan Kundera, é a insustentável incoerência do ser, que vale tanto para os influenciadores quanto para seus (milhares, milhões de) influenciados.
“Adeptos do ‘ódio do bem’ pregam um ambiente político tolerante e plural, mas nesse mundo teórico não haveria espaço para o comportamento deles mesmos”
Numa análise mais detida e menos apaixonada, fica claro que essa incongruência entre discurso e ação extrapola a mera contradição inata à condição humana e presente, em maior ou menor grau, no comportamento de todos nós, pecadores. Excetuados os casos patológicos de má índole — e não são poucos —, pessoas que produzem, replicam e endossam esse tipo de conteúdo ignóbil atuam dessa maneira porque creem que sua postura é legítima. Mas, para agir assim, o agente do “ódio do bem” (emissor, consumidor, disseminador) tem de se colocar fora do modelo social fraterno e civilizado que ele próprio propõe. O resultado é o descolamento entre a realidade concreta (prática) e a realidade pretendida (teoria). Além disso, ao espalhar o ódio que ele entende ser justificado, o militante se afasta cada vez mais do bem que ele acredita perseguir, acentuando divergências e animosidades.
“O afastamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência real do indivíduo que está fazendo essa construção” é o que Olavo de Carvalho definia como paralaxe cognitiva, um “insulto à inteligência”. Se a pessoa admite e pratica uma comunicação hostil, como exigir da coletividade uma postura diversa da sua? É uma clara distorção de percepção: o agente do “ódio do bem” não se insere na própria realidade e, como se fosse um observador externo e árbitro do certo-e-errado, concebe modelos de sociedade e comportamento desvinculados de suas experiências, ações e circunstâncias. Mas cumpre reconhecer que o conceito e a crítica da paralaxe cognitiva são muito melhor aplicados a filósofos e suas filosofias do que a influenciadores e suas narrativas.
Karl Marx, por exemplo, além de se beneficiar da condição burguesa que tanto censurava, teorizou que a consciência histórica revolucionária pertencia, exclusivamente, aos trabalhadores assalariados oprimidos pelo capital. Contudo, na prática, ele próprio personificou essa consciência proletária, seguido por tantos outros intelectuais comunistas burgueses que usavam a classe trabalhadora como massa de manobra e a descartava como bucha de canhão. Portanto, além da contradição óbvia manifesta em seu estilo de vida, Marx ilustrava a paralaxe cognitiva à perfeição: construiu sua utopia para o proletariado como um observador dissociado da sua própria realidade burguesa.
Mutatis mutandis, adeptos do “ódio do bem” pregam um ambiente político tolerante e receptivo à pluralidade de ideias; mas nesse mundo teórico não haveria espaço para o comportamento agressivo e desrespeitoso deles mesmos. Será que estamos diante apenas de simples contradições, no pior estilo do “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”? Parece mais plausível a constatação de que, na morte, Olavo de Carvalho comprovou um fenômeno que descreveu em vida. Nossos sentimentos a familiares, amigos e alunos.
Revista Oeste
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2022/01/o-odio-do-bem-uma-constatacao-postuma.html
0 comments:
Postar um comentário