Jornalista Andrade Junior

sábado, 24 de outubro de 2020

'O capitalismo sob ataque",

 por Selma Santa Cruz

O perigo das ideias e utopias que pretendem reinventar o mundo em plena pandemia

Alguém perguntou a Manuela D’Ávila, candidata comunista à prefeitura de Porto Alegre, que tipo de comunismo ela defende, o de Cuba ou o da China. Como fazia quando participou da chapa do Partido dos Trabalhadores na última eleição presidencial, ela preferiu devanear na resposta: “Nenhum dos dois, o modelo é aquele que a gente vai construir no Brasil”. Mais de 30 anos após o desmoronamento fragoroso dos regimes comunistas, a proposta de substituir o sistema sob o qual vivem bilhões de pessoas por um modelo que jamais deu certo em parte alguma pode parecer apenas um desatino, típico de nosso atraso político. Mas ele reflete o caráter utópico por trás do crescente e perigoso movimento contra o capitalismo, que vinha ganhando força desde a crise financeira de 2008 e a covid-19 impulsionou.

Diante do desastre causado pelo lockdown prolongado — desaparecimento de meio bilhão de empregos, perspectiva de encolhimento de 5% do PIB global e perda de US$ 11 trilhões de produção no ano que vem, com as consequências humanas e sociais que isso implica —, governos e organismos internacionais têm se empenhado em tentar religar os motores da economia. Busca-se ainda, como assinalou dias atrás a diretora-gerente do Fundo Monetário Internacional (FMI), Kristalina Georgieva, ir além das medidas emergenciais para implementar reformas que permitam não apenas resgatar os inéditos níveis de prosperidade anteriores à pandemia, mas corrigir disfunções do modelo para adequá-lo às demandas do século 21.

Esse será o objetivo, por sinal, da conferência internacional que o FMI vai convocar, nos moldes da de Bretton Woods, que articulou em 1946 a reconstrução do mundo devastado pela 2ª Guerra e a depressão dos anos 1930. Justamente neste momento de calamidade, contudo, quando a pobreza volta a aumentar no planeta pela primeira vez em uma década, iniciativas de reformas como essa são contestadas por uma avalanche de propostas no sentido inverso. Para um número crescente de “progressistas”, não se trata de consertar o sistema, mas de substituí-lo. Embora a maioria não se dê ao trabalho de esclarecer como essa ruptura poderia ser conduzida, em plena pandemia, sem agravar a miséria ou causar tumultos sociais.

Os questionamentos não partem, no entanto, como se poderia supor, só dos órfãos do marximo-leninismo, que proliferam nos meios artísticos, acadêmicos e intelectuais. Nem de seus pares que tentam derrubar o sistema na base da violência, como os autodenominados antifascistas, os Antifa. A maioria dos quais, a propósito, já nem se apresenta como comunista nos países avançados, onde o próprio vocábulo saiu de voga após a queda do Muro de Berlim. Tanto que os partidos que por lá ainda insistem em ideologias caducas têm optado por nomes menos assustadores — caso do La France Insoumise, A França Insubmissa, ou do italiano Cinque Stelle, Cinco Estrelas. E disfarçam seu caráter revolucionário sob bandeiras políticas de apelo universal, como a defesa do meio ambiente, o combate ao racismo ou às injustiças.


Um movimento defende a interrupção do crescimento econômico para poupar os recursos naturais


As investidas contra o capitalismo se multiplicam nas mais variadas frentes. Um exemplo é a recente encíclica do papa Francisco que atribui a maioria das mazelas do mundo ao que ele qualifica como “teorias mágicas” do neoliberalismo. “O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram fazer crer nesse dogma de fé”, pontificou Sua Santidade, como se elucubrasse sobre cânones eclesiásticos. As críticas se disseminam, inclusive, entre expoentes do pensamento econômico, como os prêmios Nobel de Economia Joseph Stiglitz e Paul Krugman, num espectro diversificado, que acomoda diferentes graus de radicalismo e opiniões para todos os gostos.

Há ideias extravagantes, como a chamada “teoria do donut”, que pretende substituir o capitalismo por um novo modelo moldado à imagem de uma rosquinha. E propostas francamente delirantes, como a do No Growth Movementque defende a interrupção do crescimento econômico para poupar os recursos naturais — tese que pode soar glamourosa para as elites dos países ricos, habituadas a uma oferta incomensurável de bens e serviços de primeira, mas despreza as necessidades de bilhões de pessoas ainda excluídas da economia de mercado. E dos 90 milhões que a crise está empurrando de volta à miséria da qual haviam escapado.

O debate, no entanto, inclui também posicionamentos qualificados de instituições e economistas respeitáveis, para os quais o capitalismo precisa de reformas para sobreviver. Esse foi o mote, por exemplo, de uma campanha lançada no fim do ano passado pelo jornal britânico Financial Times, espécie de bíblia do jornalismo econômico liberal: Capitalism Reset (Capitalismo, Hora do Recomeço). “O modelo capitalista liberal proporcionou paz, prosperidade e progresso tecnológico nos últimos 50 anos, reduzindo dramaticamente a pobreza e elevando os padrões de vida ao redor do mundo”, pontuou o editor à época, Lionel Barber, ao justificar a iniciativa. “Mas às vezes é necessário reformar para preservar. Hoje, o mundo chegou a esse momento.”

Uma perspectiva semelhante norteou, em janeiro último, a reunião do Fórum Econômico Mundial, em Davos. E nesta semana a prestigiosa MIT Technology Review, revista do Massachusetts Institute of Technology, o MIT — insuspeito berço de inovação capitalista —, foi na mesma direção com uma edição intitulada “Capitalism is in crisis; we need to rethink economic growth” (O capitalismo está em crise, precisamos repensar o crescimento econômico).

O que estaria transformando o capitalismo em vilão número 1 do mundo em meio à pandemia? Uma explicação possível é que surtos de peste não favorecem a racionalidade. O pânico coletivo e o caos que propagam sempre criaram, ao longo da história, ambiente propício para profecias apocalípticas e utopias messiânicas. Mas as críticas têm raízes mais antigas, na crise financeira de 2008. Os protestos contra a recessão global que se seguiu, simbolizados pelo Occupy Wall Street, foram o embrião de muitos dos movimentos antissistema que proliferaram desde então pelo planeta.

Para os adversários do capitalismo, o colapso de 2008 expôs disfunções do sistema, que a pandemia teria agora exacerbado. Entre essas alegadas distorções, eles destacam o incentivo à maximização imediatista dos lucros dos mercados financeiros e de acionistas de grandes corporações. Nessa ótica, a chamada “financeirização da economia”, aliada à falta de visão de longo prazo e de consideração pelos interesses da sociedade como um todo, estaria comprometendo a capacidade do sistema de continuar gerando riquezas, inovação e desenvolvimento.

Esse seria o caso, sobretudo, das economias maduras e estagnadas da Europa, incapazes de gerar empregos em quantidade suficiente para as novas gerações, o que resulta em descontentamento social e radicalismos políticos. Embora discutíveis, já que ignoram a forte regulamentação dos mercados e seu controle cada vez maior pelo Estado, tais argumentos vêm ganhando respaldo até mesmo entre capitalistas bilionários. “Como capitalista, posso dizer que o capitalismo está falido”, exagera, por exemplo, do alto de sua fortuna de US$ 17 bilhões, o megainvestidor Ray Dalio, dono de um dos maiores fundos de investimento do mundo, o Bridgewater Associates. “Ou ele se transforma ou morre.”

Como a morte do capitalismo já foi anunciada prematuramente uma infinidade de vezes, no entanto, sem que ainda se tenha confirmado, parece fazer mais sentido o ponto de vista dos que acreditam que o sistema passa apenas por mais uma de suas frequentes mutações. E mostrará uma vez mais sua capacidade de adaptação, como tem ocorrido ao longo dos séculos. Essa versatilidade, afinal, é reconhecidamente uma das forças incontestes da economia de livre iniciativa, que a fez disseminar-se de forma quase hegemônica pelo mundo, a despeito de suas contradições e da rejeição que inspira em certas elites intelectuais. Haja vista ter sido adotada até mesmo pela China comunista.

Nesse sentido, enquanto muitos apontam a crise de 2008 como prova das deficiências do capitalismo, outros destacam a recuperação econômica que lhe sucedeu como evidência de sua resiliência. Mais um ponto a favor da economia de mercado é a superioridade de seu desempenho quando comparado ao do dirigismo estatal marxista ou populista. A esse respeito, um meme que circula nas redes talvez valha mais do que mil palavras, ao mostrar o contraste entre a vitalidade da Coreia capitalista em relação a sua vizinha comunista numa imagem noturna, vista do espaço. De um lado, um mar de luzes, do outro, apenas trevas.

Uma das dificuldades do debate é que, ao simplificarem exageradamente o diagnóstico dos problemas, os antolhos ideológicos e os idealismos pueris prejudicam o encaminhamento de soluções realistas. As propostas de economistas mais pragmáticos, que enxergam oportunidades concretas para uma nova expansão capitalista na transição da economia fordista para a digital e sustentável, atraem de fato pouca atenção na competição com as concepções mirabolantes. Como a tal “teoria do donut”, que dá título ao livro da economista britânica Kate Raworth, lançado com certo estardalhaço no Brasil no ano passado: Economia Donut: uma Alternativa ao Crescimento a Qualquer Custo.

Segundo Raworth, o consenso liberal calçado em leis como a da oferta e da procura, e em uma crença supostamente equivocada sobre a natureza egoísta do ser humano, teria criado um modelo econômico que perdeu a noção do bem comum. A alternativa, como se fosse possível abolir um ou outro, seria um novo sistema moldado segundo a aparência de um donut — analogia que ela descreve como “um compasso para o progresso humano”.

“Parece uma rosquinha, e a parte de dentro é onde as pessoas caem quando ficam sem casa, dinheiro, água e alimentação. Não queremos que ninguém fique ali.” Já os contornos externos do donut corresponderiam aos limites ambientais, como tentou explicar durante sua passagem pelo país para divulgar a obra. “O objetivo é que todos fiquem dentro do donut, mas sem aumentar demais a pressão no sistema de vida do planeta.” Pode parecer bizarro, mas a ideia foi adotada recentemente de forma experimental, para tentar amenizar os efeitos da pandemia, pela prefeitura de Amsterdã — uma das cidades-símbolo do capitalismo por seu papel na globalização mercantil do século 17.

Nada contra utopias. Como reza o ditado, imaginar o futuro é parte do esforço para construí-lo. Mas projetos de engenharia social são perigosos, costumam cobrar um alto preço humano sem garantia de resultados. Como já foi exaustivamente provado pelos experimentos marxistas na extinta União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, URSS, o do socialismo bolivariano na Venezuela, as repetidas tentativas em Cuba, na Nicarágua e em várias ex-colônias europeias no continente africano, como o Zimbábue.

Pois sistemas econômicos são construções complexas, fruto da auto-organização humana, não de teorias abstratas concebidas por mentes iluminadas. “Por isso, mesmo um grupo inteligente de pessoas cometerá erros enormes se tentar criar algo totalmente diferente”, ponderou recentemente o economista norte-americano Noah Smith em artigo no site da Bloomberg, no qual advertiu também que a implementação de mudanças sociais radicais nunca é fácil. “As revoluções tendem a ser violentas e caóticas, e os indivíduos que acabam no poder são geralmente os que mais se preocupam em preservar sua dominação, em vez de garantir o bem-estar material das pessoas que governam.”

Uma sábia advertência contra os radicalismos do momento atual e o perigo das ideias decrépitas que se recusam a morrer.

Revista Oeste



















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