por Roberto DaMatta
Nascido no século passado e sendo inevitavelmente marcado por essa época, padres, cartomantes, videntes, fantasmas e conspirações fazem parte da minha vida.
Tinham-se empregadas (conhecidas apenas pelo primeiro nome e, em geral, por um apelido de duas sílabas), faziam-se compras em armazéns e quitandas nas quais a “dona da casa” era “freguesa”; e rezava-se numa igreja cujo padre era em geral coadjuvado por um mago, um médium, uma cartomante ou um astrólogo.
Os ritos de passagem oficiais e indispensáveis (batismo, primeira comunhão, casamento, ritos funerários) eram realizados dentro do catolicismo, mas o outro mundo era compartilhado e dividido. Noto que o protestantismo era, ao contrário de hoje em dia, ausente.
O sagrado dominante era católico romano, mas os paradoxos, os acidentes da vida – essa esfera que de modo muito claro inflige um limite ao lado rotineiro – eram complementados por cartomantes, astrólogos e médiuns e outros especialistas em “ciências ocultas e letras apagadas”. As confusões do presente e um futuro duvidoso pertenciam aos astrólogos, bruxos e às cartomantes.
Minha mãe dizia que era católica, mas acreditava no espiritismo. Penso que não é um exagero afirmar que essa duplicidade de códigos destinados ao entendimento do futuro e do sofrimento é parte das origens e da formação do Brasil.
Nascemos em uma colônia semiabandonada, mas num século 19 revolucionário e napoleônico passamos de periferia a centro do Reino de Portugal e Algarve. A vinda da família real e da corte para o Rio de Janeiro teve profundas consequências socioculturais.
Houve uma inversão geopolítica singular em paralelo a uma visão íntima e realista da realeza e da aristocracia. Esse “futuro” imprevisível para historiadores e jornalistas, era – porém – previsível para bruxos e astrólogos.
O oficial e o rotineiro sempre estiveram em combate complementar entre nós – e cada qual tinha os seus teólogos e sacerdotes. No livro testemunho de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias (de 1855) – a trama é movida pelo padre da Sé, por um feiticeiro do Mangue, pelo Leonardo Pataca, um meirinho, por fidalgos, por uma viúva rica e por uma cigana.
O Major Vidigal faz – como ensina Antonio Candido num ensaio clássico – um contraponto – uma espécie de polícia e juiz daquele sistema.
Na nossa casa – formada por uma família de três gerações com seus criados – o menino testemunhou encontros com espíritos por meio de um copo imantado que recebia suas mensagens. As almas do outro mundo que assombravam pedindo rezas, uma tia solteirona.
Já as entidades acessadas por meio do copo, eram todas favoráveis aos projetos da mãe. Ao lado disso, o oratório da casa pululava de santos protetores tal como nos “lares” dos antigos romanos.
A polarização entre nobres e comuns (teoricamente brancos ou mestiços) e ex-escravos negros – até hoje vigente, mas ameaçada por desarmonias políticas dificultava um sistema submetido a uma modernização capitalista personalizada e aparelhada – conduzia sempre a desfechos imprevisíveis. Neles, o fake, o fuxico, as anedotas, as intrigas enfeixadas por múltiplas teorias conspiratórias, revelam uma sociedade na qual o código pessoal do saber com quem se fala (que vive com privilégio e na aristocracia) tem como alternativa um sistema impessoal ainda visto como uma ameaça desumanizadora justo quando as reformas cidadãs, tornam-se inexoráveis.
As desavenças entre matrizes largamente inconscientes sempre foram explicadas por magos, astrólogos, cartomantes e bruxos hoje relativamente substituídos por “especialistas”, cronistas e comentadores – esses mediadores entre os fatos e o seu significado.
A grande questão sempre foi a de saber se o mundo tem finalidade ou se o acaso é o grande senhor, cabendo a nós o dever da construção e da compreensão. Ou se o Brasil presta ou está condenado a uma autoproclamada ruína.
Roberto DaMatta, O Estado de S. Paulo
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