Tawany Cattan, Gazeta do Povo
Por de 10 anos, só têm acesso à luz graças a cabos ligados a postes improvisados. Mais de 120 dias depois das enchentes que atingiram 478 cidades do Rio Grande do Sul, o trio permanece sem casa. Eles moram embaixo da ponte de uma rodovia na Ilha dos Marinheiros, em Porto Alegre. E fazem parte da multidão de desabrigados pelas inundações de maio, que afetaram mais de 2 milhões de pessoas. Família Nascimento, na casa improvisada embaixo da ponte, onde se abrigaram enquanto não possuem um lar adequado | Foto: Tauany Cattan/Revista Oeste Próximo à “casa”, eles adaptaram alguns currais quabrigam suas 24 cabras, dois javalis, cinco cavalos e dez cães.O novo lar dos Nascimento é feito de paletes de madeira e cobertores, para isolar o calor. Dentro do espaço, dividido entre a parte inferior e um mezanino improvisado onde a família dorme, há um fogão, um armário, uma máquina de lavar, uma TV e um sofá. Os veículos que cruzam a ponte fazem o refúgio tremer. Eles usam uma tenda como banheiro. Para tomar banho, enchem baldes com água fornecida pela prefeitura.
Segundo Milton, a Prefeitura de Porto Alegre retirou um banheiro químico que havia sido instalado no local sob a justificativa de que o contrato com a empresa que concedeu a infraestrutura acabou. Em resposta à situação precária da família, o empresário Samuel Rodovalho e alguns colegas iniciaram um projeto para erguer casas para os desamparados. A próxima será a de Nascimento. “Achamos uma tecnologia mais sustentável e que isola melhor o calor do espaço”, contou o empresário. “Temos mais de cem famílias no nosso cadastro cujas casas foram completamente levadas pelas enchentes. Construímos uma com 36 metros quadrados em menos de 25 dias.” O empresário explicou que cada empreendimento custa de R$ 20 mil a R$ 60 mil.
Ainda há cerca de 2,3 mil pessoas desalojadas em todo o Estado gaúcho e 26 cidades com abrigos ativos. Apesar da queda significativa no número de pessoas sem um teto, há famílias que dividem o mesmo espaço com dezenas de pessoas. Em maio, havia mais de 78 mil habitantes em abrigos. Hoje, são 2 mil. É o caso da família de Maiara Lima, de 29 anos. Ela e mais 19 pessoas, sendo nove crianças, foram resgatadas somente dois dias depois do avanço da água. Esse foi o tempo que o grupo permaneceu em cima do telhado. Eles passaram quatro meses em uma igreja, antes de conseguirem uma casa de 40 metros quadrados, concedida por uma colega. As roupas das crianças estão misturadas às dos adultos. “Ninguém tem roupa própria”, contou Maiara. A moradora da Ilha da Pintada disse que recebeu o Auxílio-Reconstrução de R$ 5 mil do governo federal e o benefício do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços, de R$ 2,5 mil, do estadual. Com o dinheiro, comprou uma geladeira, um sofá e um roupeiro. Próximo à capital gaúcha, Eldorado do Sul foi completamente destruída.
Dos 40 mil habitantes, 32 mil foram diretamente afetados. Lá, os moradores do bairro da Picada se queixam da ausência do poder público. “Não recebemos nenhuma ajuda”, lamentou a podóloga Lidiane Cabral, de 44 anos. “Fizemos da minha casa um ponto de doação desde as enchentes. Com a ajuda de empresários e influenciadores, inauguramos uma cozinha solidária e distribuímos 50 almoços por dia.”
Depois de quatro meses, o trabalho voluntário de Lidiane continua. Até hoje, ela e o barbeador Josias Espíndola ajudaram mais de 280 famílias, por meio de rifas e “vakinhas” on-line. Segundo a moradora, muitos ainda não receberam os auxílios do governo. “Tudo é negado com a justificativa de que há duplicidade de endereço”, lamentou. “Mas é burocracia, porque todas as casas são enumeradas. Se não fosse pelo povo, as pessoas estariam sem comer até hoje. Fomos esquecidos.” Lidiane Cabral, podóloga, cuidadora e moradora de Eldorado do Sul.
As paredes ainda estão úmidas Além das ilhas e de Eldorado do Sul, Canoas, na Região Metropolitana de Porto Alegre, ainda transpira o odor das enchentes. Ao entrar em uma das casas do bairro Harmonia, é possível sentir na pele a umidade e a temperatura fria das paredes. As infiltrações no teto, que ameaça ceder, e a mancha marrom do barro que mostra o nível que a água atingiu insistem em carimbar o lar dos gaúchos. “Tudo tem cheiro, fede e é frio”, disse Adecy Osvaldo, morador do bairro. “Tenho uma casa, mas não é o meu lugar.”
Osvaldo mora na residência da exmulher dele, que emprestou o espaço. Em junho, quando Oeste visitou 13 cidades para reportar as marcas da tragédia, Canoas e a capital gaúcha exibiam um cenário catastrófico. À época, havia objetos domésticos amontoados nas esquinas, arrastados pela água ou deixados pelos moradores que retornavam gradativamente às suas casas. Nessa nova visita, os mesmos dejetos estão concentrados em parques, na beira de rodovias e em espaços abertos, como aterros improvisados pelas prefeituras. Como o Parque Eduardo Gomes. Há pilhas de lixo com mais de seis metros de altura. Os amontoados reúnem eletrodomésticos, roupas, lixo e móveis. No alto, é possível enxergar a fumaça do gás metano que surge da decomposição de matérias orgânicas
O Rio Grande do Sul renasce Ao sair de Porto Alegre, após mais uma hora e meia de viagem, a reportagem foi até Estrela, no Vale do Taquari. Dos chamados municípios do Alto Taquari — Lajeado, Encantado, Estrela e Arroio do Meio —, Estrela é o mais antigo. No auge da enchente, o município teve 75% de seu território submerso. A cidade ainda tem 182 pessoas desabrigadas e três abrigos ativados. Roseli Andréia da Silva, de 40 anos, permanece à espera das casas temporárias. A gaúcha teve sua casa atingida por uma enchente há 15 anos. Na ocasião, a prefeitura prometeu que os moradores afetados passariam 90 dias em abrigos até terem suas casas definitivas, que nunca chegaram. “Estou há dez anos à espera”, disse. “Fui para a casa temporária há alguns anos. Agora, estou de novo num abrigo e continuo à espera de um lar definitivo.” As casas prometidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em maio, ainda não chegaram à maior parte das cidades atingidas pelas águas. Aterro improvisado em Canoas
“Entrava-se de barco pelo corredor da velha casa de cômodos onde eu morava”, escreveu o poeta Mário Quintana em Sapato Florido (1948), publicado depois das enchentes de 1941. “Tínhamos assim um rio só para nós. Um rio de portas adentro. De noite não era preciso sonhar, pois não andava um barco de verdade assombrando os corredores? Foi também a época em que era absolutamente desnecessário fazer poemas.” Assim como Estrela, Arroio do Meio virou um cemitério de casas depois da invasão do rio, que chegou a quase 30 metros. O cenário não se alterou desde a última ida de Oeste, em junho.
No meio dos escombros e do forte odor do barro, uma bandeira do Rio Grande do Sul hasteada no alto de uma janela se destaca em um cenário em que ainda predomina a cor marrom. Há 40 anos a família Schneider vive no sobrado de 117 anos. Quatro meses depois da inundação, o grupo retornou à casa. O espaço também é lar do restaurante Casa do Peixe, no andar inferior, administrado pelos Schneider há 70 anos. Enquanto o leitor acompanha esta reportagem, Tarcísio e Solange Schneider, ambos de 65 anos, realizam a reabertura da Casa do Peixe, nesta sexta-feira, 20.
“É um renascimento”, disse o gaúcho. “Estamos limpando desde 2 de maio. Faz poucos dias que comecei a ver um lar novamente.” A catástrofe da negligência Em meio ao ciclo de desastres climáticos no Rio Grande do Sul desde 1941, emerge a catástrofe da negligência. Em 2017, um estudo que atualizava uma política de gestão de risco de desastres partiu do exgovernador José Ivo Sartori (MDB). Mais de seis anos depois, o Estado segue sem a legislação, segundo o jornal Zero Hora. O texto nunca foi para a Assembleia Legislativa, processo necessário para criar uma lei. Ao jornal, Ana Pellini, titular da Secretaria do Meio Ambiente e Infraestrutura na época, alegou que a norma não aconteceu “porque faltou tempo para terminar a proposta e apresentá-la aos deputados”. Segundo o advogado e geógrafo Eduardo Moreira, o Brasil tem uma cultura de “reação”, e não de “prevenção”.
“Como as enchentes aconteceram há anos, os governantes não fizeram a manutenção do sistema”, explicou. “A Holanda, tecnicamente, está abaixo do nível do mar, mas eles conseguem acrescer territórios sobre o mar, com diques. Há preparo e recursos.”
Em 2002, o Ministério Público (MP) pediu para a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e para a Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam) uma reavaliação das atividades de mineração, dragagem e desassoreamento — práticas que consistem na retirada do acúmulo de dejetos e de terra dos rios. Naquele contexto, o entendimento era de que tais ações de interesse privado deveriam ceder espaço para a preservação do meio ambiente. Com isso, os órgãos ambientais não licenciaram mais essas atividades até 2024. O advogado especialista em Direito Ambiental Fabio Luis Correa explicou que a ação do MP se baseou em uma exigência de um grupo ambientalista chamado Associação Comunitária Amigos do Lami.
“Eles falaram sobre os impactos negativos da dragagem dos rios ao meio ambiente”, disse. “A Fepam deixou de emitir licenciamentos ambientais para preservar a biodiversidade. Já são mais de 20 anos sem a dragagem do rio, o que causou um transbordamento natural.” Desde 2002, o Estado e a União deixaram de licenciar atividades de desassoreamento dos rios do Rio Grande do Sul. Em 2018, engenheiros alertaram sobre a necessidade de avaliar a falha de duas estações de bombeamento na capital gaúcha. A dimensão da tragédia A consequência das enchentes no Rio Grande do Sul deve perdurar por anos. O Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, continua fechado. A data prevista para a retomada de voos domésticos é 21 de outubro, de acordo com a Fraport, concessionária responsável.
Já os voos internacionais retornam em dezembro. Enquanto isso, os gaúchos levam um dia inteiro para se deslocar. Sem o aeroporto, o prejuízo estimado é de R$ 49 milhões por dia, além do isolamento do Brasil e do mundo. O Estado gaúcho também sofreu uma perda patrimonial de R$ 10 bilhões. Em produto interno bruto, são R$ 40 bilhões. Nas escolas, 378 mil alunos foram impactados. As enchentes provocaram mais lixo do que o conflito na Faixa de Gaza: 47 milhões de toneladas de dejetos — ou, como corrigiu um dos moradores a Oeste, “o amontoado do que restou da nossa história”.
Tawany Cattan, Gazeta do Povo
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