Jornalista Andrade Junior

sábado, 28 de setembro de 2024

Caso Silvio Almeida: crise no identitarismo – Parte 2 (Conclusão)

 GABRIEL WILHELMS/INSTITUTO LIBERAL 


Alguém está mentindo. Se for Almeida, então teríamos que aquele que comandava a agenda dos direitos humanos no governo não só é um assediador em série, como um narcisista capaz de publicamente atacar suas vítimas e de usar suas próprias bandeiras identitárias para vestir ele mesmo o chapéu de vítima. Se ele está falando a verdade, então caberia, entre outros personagens, à própria Anielle o papel de narcisista, disposta a destruir a vida de alguém por um ganho pessoal de poder, bem como a usar também suas bandeiras identitárias para este fim.

O fato é que, independentemente do que se acredite, o identitarismo em si inspira e transpira narcisismo. Uma das críticas que a ele direcionamos, não por acaso, é o uso de minorias e de questões de identidade como uma mercadoria para o engrandecimento pessoal, inclusive material; abundam os exemplos de personalidades que se valem de traços fenotípicos como um cartão de visitas para obter desde prestígio e influência até mesmo poder de fato.

Recordemos que Almeida não foi acusado apenas de ter cometido assédio sexual, mas também moral. O ex-secretário dos Direitos da Criança e do Adolescente do MDHC, Ariel de Castro, declarou que “soube que muitos colegas que iniciaram comigo deixaram o ministério por desrespeitos do ministro”. Castro foi exonerado com menos de cinco meses no cargo e declarou na época crer que a motivação havia sido uma reunião que ele teve com a primeira-dama, Janja, e que teria deixado o ministro “melindrado”. A justificativa para a exoneração, segundo Castro, seria essa: “Quando saí, em maio de 2023, fiquei sabendo que ele e alguns dos assessores dele, a mando dele, justificaram que eu não teria competência e que era insubordinado, porque não aceitava ordens de um ministro negro, dando a entender que eu seria racista. Sofri muito com isso. Mas agora a verdade apareceu, e o país todo sabe quem ele é”.

A possibilidade de que o ex-funcionário tenha sido, ainda que veladamente, acusado de racismo, não destoaria da estratégia inicial de Almeida, que foi tratar tudo como “uma campanha para afetar a minha imagem enquanto homem negro em posição de destaque no Poder Público”. O antigo subordinado teria sido exonerado por se recusar a cumprir ordens vindas de um homem negro; Almeida estaria sendo alvo de uma campanha difamatória por ser um homem negro. Parece haver um padrão narrativo aqui.

Assumindo que a versão de Castro esteja correta e realmente sua demissão tenha sido justificada por racismo, temos algo bastante grave. Tivesse Castro em algum momento cometido algum ato de racismo de fato contra Almeida, certamente não se apelaria ao argumento da insubordinação: ele não só seria exonerado de prontidão como provavelmente responderia criminalmente e o caso seria explorado publicamente. Como nada disso ocorreu, podemos afirmar com segurança que Castro nunca cometeu um ato de racismo direto contra Almeida. Ocorre que não é necessário que o tenha feito, pois a própria teoria do racismo estrutural dispensa a necessidade de ação individual para configurar o racismo, já que este dependeria da estrutura social. É o pulo do gato que permite que o termo racismo tenha sido vulgarizado e que pululem acusações de racismo, mesmo onde outra explicação seria perfeitamente cabível. Digamos que Castro tenha realmente sido insubordinado; provaria isso que o foi por ter um chefe negro? “Se o chefe dele fosse branco, ele não seria”. Mas como podem afirmar? Como podem ter certeza? Acaso não há insubordinação entre empregados e chefes brancos?

Almeida protesta que sua tese não retira a responsabilidade individual, mas fato é que a reduz consideravelmente e permite a banalização do que, justamente por ser grave, deveria ser visto com cautela. É dessa forma que Djamila Ribeiro pode afirmar, por exemplo, que “É impossível não ser racista tendo sido criado numa sociedade racista”. Se a sociedade é racista, o racismo é sempre estrutural e logo é onipresente, então ele está sempre por aí, pairando, à disposição para ser usado, ora como ataque, ora como defesa: se me acusam disso, eu que sou um homem negro, é porque eles são racistas.

A ideia de que o racismo é onipresente, que é da mesma variedade de “a sociedade é patriarcal” e quejandos, mais do que uma singela pretensão acadêmica, é uma ferramenta ou, podemos mesmo dizer, uma arma. Independentemente de qual seja o desdobramento do caso, me parece claro o uso da identidade como uma forma de obter e/ou manter o poder. Isso é típico daquilo que chamo de “identitarismo profissional”, que é o uso da identidade (raça, sexo, orientação sexual etc.) para galgar posições em diferentes setores (acadêmico, profissional, intelectual, público, etc.). Trata-se não apenas de reconhecer e celebrar o fato de que alguém com determinada identidade atingiu tal posto, mas de defender até mesmo um merecimento do posto pela identidade per se. Uma ramificação bastante frequente e que muitos devem estar presenciando agora no período eleitoral é o clássico “votem em mim porque sou mulher”, como se isso fosse uma proposta ou um atributo.

O que o identitarismo não consegue aceitar é que o preconceito, no sentido exato de preconceber algo, é uma via de mão dupla. Muitos se importam apenas com o aspecto negativo, que é preconceber coisas negativas com base em uma identidade, qualquer que seja, mas tão equivocado quanto é fazer o inverso, isto é, atribuir virtudes à identidade. Não há nada intrinsecamente bom ou mal em ser homem ou mulher, em ser negro, branco, pardo ou amarelo, em ser hétero ou gay etc. – e é esta consideração, que creio ser justo reputar como óbvia para a maioria das pessoas que é tratada como um sacrilégio e, pasmem, “racismo” pelas hostes identitárias. É que confronta as pretensões de identitaristas profissionais.

A identidade como arma para galgar posições é facilitada pelas próprias teorias identitárias que travestem inclinações narcisísticas de seus proponentes como “reparação histórica” ou coisa que o valha. É nesse espírito que Almeida apresenta o que seria uma visão “neoclássica” para a defesa das ações afirmativas, isto é, quando baseadas no mérito individual: “Se tenho dois candidatos a uma vaga de emprego, uma mulher negra e um homem branco, seria totalmente racional se eu optasse pela mulher negra. Isso porque posso pressupor, com boas chances de acerto, que, em uma sociedade em que há discriminação de raça e gênero – seja por preferências, seja por falhas de mercado –, uma mulher negra teve de superar muitos obstáculos e demonstrar excepcional resiliência e inteligência para chegar no mesmo patamar de uma pessoa branca. Posso concluir que ela será mais produtiva e com ela obterei mais lucro”.

Para ser justo, Almeida não se satisfaz com esse ponto de vista, já que este incluiria um elemento meritocrático (superação individual) e deixaria de fora os negros que não tivessem alcançado tal superação. De qualquer forma, está subjacente o reconhecimento de que, no exemplo dado, uma mulher negra necessariamente seria mais produtiva do que uma pessoa branca. Só aquiescerá com isso quem estiver interessado em sinalizar virtude. Como não podemos inferir nada da identidade a priori, não há razão para supor tão somente com base na cor da pele que um candidato é uma melhor ou pior escolha do que outro. No exemplo fornecido por Almeida, não há qualquer menção a detalhes como experiência, formação, habilidades, idiomas etc., como se esses “detalhes” fossem menos importantes em uma entrevista de emprego do que o nível de melanina presente na pele do candidato. Mesmo a “superação de obstáculos” é uma aproximação muito inicial e estereotipada, e por si só nunca deveria basilar a escolha final sobre quem deve ser contratado. Talvez o outro postulante ao emprego seja deficiente. Talvez ele sofra com alguma dificuldade de aprendizagem séria que tenha lhe imposto grandes dificuldades, tornando a educação um obstáculo pessoal maior do que para sua rival. Talvez ele tenha crescido na periferia. Talvez ele tenha sofrido algum tipo de abuso que foi um obstáculo para a própria continuidade da sua vida. Talvez ele seja a prole de uma família desestruturada. Há infinitos talvez. Provavelmente ele nunca tenha sofrido racismo, mas sua rival, que sofreu, pode ter outras vantagens não consideradas na equação que contrabalancem a desvantagem da discriminação racial. “Em termos relativos e estatísticos, é mais provável que ela seja socialmente mais desfavorecida”. Sim, mais provável, mas não o suficiente para tão somente com isso basilar a escolha da contração, já que, mesmo se a identidade (raça, sexo etc.) for entendida como um obstáculo, por óbvio, ela não é o único obstáculo na vida das pessoas, e não podemos, em reconhecimento às dificuldades de uns, apagar as de outros, como se suas vidas pudessem ser resumidas com base em traços fenotípicos.

A implicação lógica desse modo de pensar, que é exatamente o que boa parte da turba identitária declara, é que, se a personagem do exemplo fosse preterida no cargo, necessariamente o recrutador seria “racista”. Façamos então um exercício retórico. Imaginemos que, sendo considerado para assumir o cargo de ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida tivesse sido preterido por um homem branco. Haveria aqui racismo por parte de Lula? Ou o mais importante: ele acusaria o presidente de racista ou admitiria a existência de fatores outros para a escolha final? Se é para supor, eu ficaria com a segunda opção, pois não seria do seu interesse fechar em definitivo uma porta no governo nem se indispor logo na largada com a esquerda situacionista (sempre tão simpática e receptiva aos devaneios identitários). Sabemos, por exemplo, que a acusação de motivação racial não se estendeu ao governo, sendo que Almeida alegou que foi ele quem pediu que Lula o demitisse. Identitaristas profissionais sabem ter jogo de cintura quando lhes convém.

Isso não é dizer, como é óbvio, que, por identitaristas profissionais, esteja me referindo a pessoas com determinadas identidades que anseiam melhorar suas vidas e obter sucesso. Por identitarista profissional, me refiro a quem usa essa identidade e, sobretudo, sua própria militância, supostamente com uma sincera preocupação pelas minorias, como mecanismo para alcançar poder e influência e como um escudo para mantê-los quando ameaçados. Se uma preocupação sincera com questões identitárias em algum ponto se transforma em oportunismo, se oportunismo desde o primeiro momento, se uma crença sincera na virtude de suas bandeiras, isso é material para a análise de psicólogos. O que me limito a afirmar aqui é que o resultado é narcisismo.

Como argumentei antes, ainda que Almeida esteja sendo vítima de um complô, não é possível falar em racismo sem que ele viole sua própria tese, e o fato seguiria sendo que desde o primeiro momento foi essa a motivação por ele apontada. Ele não apenas vestiu a carapuça de homem injustiçado, mas a de “homem negro em posição de destaque no Poder Público”, vítima de um complô com motivação racial. Essa é sempre a estratégia preferencial de identitaristas profissionais. Essa foi a estratégia de Anielle Franco, por exemplo, quando foi criticada por ir assistir à final da Copa do Brasil com um avião da FAB. Ao que tudo indica, ela e outros ministros (inclusive Almeida), realmente estavam participando de uma ação conjunta de seus ministérios, mas tanto o mérito disso quanto a própria ida à partida em um avião oficial são naturalmente objeto de escrutínio por parte dos contribuintes. Mas, pretendendo-se acima da crítica, a ministra logo se defendeu com a dupla cartada identitária (mulher + negra): “Importante reconhecer que práticas de desinformação, manipulação da verdade e a divulgação de notícias falsas configuraram violência política de Gênero e Raça na tentativa de impedir o nosso trabalho. Não são ataques a este ministério ou a mim, mas ao povo brasileiro”. Então, você, chamado contribuinte (embora não pague impostos voluntariamente), trabalha quase metade do ano para sustentar o papai Estado e, se ousa criticar a forma como seu dinheiro está sendo usado, ainda pode sofrer a imputação de estar cometendo “violência política de gênero e raça”.

Não consigo encontrar adjetivo melhor para aqueles que se colocam em um patamar de verdadeira superioridade moral, que sobem em um pedestal e cobram louros de todos e não toleram críticas de ninguém, do que narcisistas.

Não há como ser mais claro do que isso: o fato de você ser branco, negro, pardo, amarelo, cor de rosa, laranja ou qualquer outra identidade que tentem santificar nada comunica a priori sobre quem você é, sobre seus méritos ou defeitos, e com toda certeza não indica merecimento tácito de nada, seja de negativo ou positivo. Aceitar o contrário disso é permitir que narcisistas de plantão se escorem em traços de identidade, a priori irrelevantes, para navegar a vida de forma até mesmo desleal, valendo-se de supostos obstáculos (que podem muito bem existir, como, em variados graus e natureza, existem para todos, mas não são uma desculpa para agir de forma antissocial) como atalhos para alcançar o que, em última instância, é uma glória pessoal, mas não uma glória legitimamente alcançada ou merecida, mas arrancada à força com apelos ao sentimentalismo do público e covardia daqueles dispostos a acender a primeira vela à sinalização de virtude identitária. Nada pode ser mais sintomático do quão antagônico o identitarismo é para a igualdade formal (a mais importante de todas) do que essa suposição de que alguns estão acima de coisas “mundanas e triviais” como o escrutínio sobre o dinheiro público ou mesmo sobre denúncias de assédio. É como, parafraseando Orwell, todos sendo iguais, eles fossem mais iguais do que outros. Não são, e estou certo de que o leitor deve conhecer alguns adjetivos para aqueles que pretendem ser em razão de traços fenotípicos.

Fontes:

https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/ministro-dos-direitos-humanos-silvio-almeida-e-acusado-de-assediar-mulheres-entre-elas-a-ministra-da-igualdade-racial-anielle-francohttps://www.metropoles.com/colunas/igor-gadelha/silvio-almeida-mao-anielle-reuniao

https://www.poder360.com.br/poder-governo/candidata-a-vereadora-diz-ter-sido-abusada-por-silvio-almeida-em-2019/

https://congressoemfoco.uol.com.br/area/governo/ministro-silvio-almeida-e-acusado-de-assedio-sexual-e-moral/

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/silvio-almeida-veja-a-cronologia-da-crise-que-derrubou-ministro/

https://www.gazetadopovo.com.br/republica/ministerio-me-too-tentou-interferir-licitacao-disque-100/

https://crusoe.com.br/diario/ministerio-de-almeida-poe-em-duvida-intencoes-da-me-too/

https://www.gov.br/mdh/acl_users/credentials_cookie_auth/require_login?came_from=https%3A//www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2024/setembro/nota-de-esclarecimento-sobre-tentativa-de-interferencia-da-me-too-na-nova-licitacao-do-disque-100

https://www.terra.com.br/nos/esposa-de-silvio-almeida-diz-que-denuncias-sao-absurdas-e-as-atribui-ao-racismo,62cf1d8369b3d8aff0e5d5f92ce3cb42hyln9hdk.html

https://www.poder360.com.br/poder-flash/leia-a-integra-nota-de-anielle-franco-sobre-casos-de-abuso-sexual/

https://www.intercept.com.br/2024/09/10/ex-aluna-silvio-almeida-relata-ter-sido-assediada-banca-de-monografia/

https://veja.abril.com.br/coluna/matheus-leitao/estudantes-de-direito-relataram-assedio-de-silvio-almeida-a-colegas

https://www.metropoles.com/colunas/guilherme-amado/um-detalhe-que-pode-mudar-os-rumos-do-inquerito-de-silvio-almeida

https://www.bbc.com/portuguese/articles/cwyjzjvyx1go

https://istoe.com.br/harvey-weinstein-esta-fora-de-perigo-apos-cirurgia-no-coracao-2/

https://www.metropoles.com/sao-paulo/agora-a-verdade-apareceu-diz-ex-secretario-sobre-silvio-almeida

https://www.metropoles.com/colunas/rodrigo-rangel/ministro-ficou-melindrado-por-reuniao-com-janja-diz-secretario-demitido

https://www.cnnbrasil.com.br/politica/silvio-almeida-afirma-que-pediu-a-lula-para-ser-demitido/

Racismo Estrutural — Silvio Almeida

Pequeno Manual Antirracista — Djamila Ribeiro

































PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/caso-silvio-almeida-crise-no-identitarismo-parte-2-conclusao/

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