Jornalista Andrade Junior

segunda-feira, 30 de setembro de 2024

Brasil em chamas: de quem é a culpa?

 MARCOS REIS


Em 2024, o número de queimadas no Brasil será o pior dos últimos 14 anos. Até o dia 23 de setembro, o Programa do BD Queimadas do Inpe registrou 202,1 mil ocorrências. Por sua vez, o Monitor do Fogo do Mapbiomas registrou 11,3 milhões de hectares queimados até o final de agosto. O “Brasil em chamas” de 2024 tem recebido intensa cobertura da imprensa. As imagens de animais queimados e de áreas devastadas causam perplexidade e questionamentos. As pessoas se perguntam: temos capacidade de reduzir o problema das queimadas? Qual o grau de responsabilidade dos governos neste problema? O que podemos fazer, efetivamente, para minorá-lo?


Para responder a esses questionamentos, precisamos conhecer melhor o nosso meio ambiente. Em 2024, ocorre no Brasil a seca mais intensa e abrangente desde 1950. Trata-se de um clima extremamente propício para a propagação de incêndios. O ano de 2023 já tinha sido muito seco, o que contribuiu para agravar a situação de 2024.


Por outro lado, o Brasil é dividido em 6 biomas[i]: Amazônia, Caatinga, Cerrado, Mata Atlântica, Pampa e Pantanal. Estes biomas não são homogêneos. Eles englobam diversas formações vegetais e algumas delas são dependentes/influenciadas pelo fogo.


O Cerrado, o Pantanal e o Pampa (Figura 1) são biomas cujas formações vegetais são dependentes do fogo. Isso significa que os incêndios naturais foram um elemento importante, ao longo de milhares de anos, na evolução destas formações. Elas possuíam um determinado regime natural de fogo, ou seja, os incêndios ocorriam com uma determinada frequência, intensidade e atingiam uma determinada área.


Figura 1: Relação entre o fogo e a vegetação da América do Sul (HARDESTY; MYERS; FULKS, 2005).




Até o dia 23 de setembro, o Inpe registrou 202,1 mil ocorrências de incêndios no Brasil, sendo 101,4 mil no bioma Amazônia, 66,1 mil no Cerrado, 17,1mil na Mata Atlântica e 11,3 mil no Pantanal. Muitos dos incêndios na Mata Atlântica ocorreram nos denominados Campos de Altitude, que são formações vegetais dependentes/ influenciados pelo fogo. As ocorrências de incêndios no Brasil, em 2024, foram 98% maiores do que em 2023 e 49,2% maiores do que em 2022. Em relação ao bioma Amazônia, 2024 teve 40,2% mais incêndios do que em 2020, quando o governo Bolsonaro foi acusado de negligente.


Segundo o Monitor do Fogo do Mapbiomas, a área total queimada foi de 11,3 milhões de hectares até o final de agosto. As formações campestres e savânicas, que são as formações vegetais dependentes/ influenciadas pelo fogo, representaram 42,6% desta área. As pastagens representam 21,1% da área queimada e as formações florestais, sensíveis ao fogo, 16,4%. Sem dúvida, vivemos uma catástrofe ambiental que precisa ser minorada.


1) Até que ponto temos capacidade de reduzir o problema das queimadas?


Nos biomas Cerrado, Pantanal e Pampa e em partes da Amazônia e Mata Atlântica, “acostumadas ao fogo”, o regime natural de incêndios foi muito alterado, ou seja, a frequência, a severidade e a intensidade dos incêndios estão bem maiores do que no passado. Podemos e devemos trabalhar para diminuir a frequência, a intensidade e a severidade desses incêndios, mas não podemos eliminá-los totalmente. Em anos de secas mais fortes, inúmeros incêndios ocorrerão.


Nas partes dos biomas Amazônia e Mata Atlântica, sensíveis ao fogo, é preciso intensificar as ações de prevenção e combate. Na Amazônia, uma parte dos incêndios é ligada ao processo de grilagem de terras públicas e deve ser energicamente combatida. Por outro lado, uma parte significativa dos agricultores brasileiros tem capital limitado e falta de acesso a ferramentas, maquinário e tecnologias apropriadas para o preparo do solo, o que faz com que usem o fogo por ser a ferramenta mais econômica disponível. Então temos que trabalhar para que esses agricultores pobres tenham acesso a recursos financeiros e tecnológicos.


2) Qual o grau de responsabilidade dos governos no problema das queimadas?


Os governos têm alto grau de responsabilidade sobre o problema, especialmente o governo federal, que não tem utilizado a abordagem e os métodos corretos para enfrentá-lo. Abaixo, elencamos alguns motivos que explicam o retumbante fracasso governamental em relação ao problema das queimadas:


2.1) Despreparo: como relatado pela imprensa, o governo federal foi amplamente alertado de que a seca de 2024 seria muito severa e não se preparou adequadamente. Não disponibilizou recursos adequados nem a coordenação necessária para a prevenção e combate aos incêndios que poderiam ocorrer. Isso é especialmente grave porque o governo foi eleito tendo como prioridade a agenda climática. Para tanto, nomeou uma ministra do Meio Ambiente alinhada a ela.


No entanto, a falha foi vergonhosa. O deputado federal, Pedro Lupion, relatou em artigo no jornal Gazeta do Povo de 20/09/2024 que, do orçamento de R$ 267,5 milhões do Ministério do Meio Ambiente destinado para a fiscalização e para o controle de incêndios, apenas R$ 7,3 milhões foram executados até julho. Houve uma greve de 200 dias de seus servidores que se sobrepôs ao período em que as medidas preventivas deveriam ser tomadas. Diante das evidências, a ministra do Meio Ambiente foi obrigada a reconhecer, em reportagem da Folha de SP de 23/09/2024, que as ações do governo federal contra o fogo foram insuficientes.


O editorial do jornal Estado de São Paulo de 19/09/2024 resumiu bem a situação: “a experiência mostra que, quando não fazem a menor ideia de como resolver um grave problema, as autoridades brasileiras em geral propõem a realização de um “pacto nacional”. Foi o que se viu na reunião convocada pelo presidente Lula da Silva para selar o tal “pacto” entre os Três Poderes em torno das ações de combate aos incêndios em diversos biomas país afora. Malgrado todo o poder de que estão investidos os presentes, desse encontro não se pôde extrair nada remotamente parecido com um plano de ação bem formulado e exequível. O que se ouviu foi uma coletânea de platitudes e ideias em profusão, algumas estapafúrdias, como se apenas saliva bastasse para apagar o fogo”.


2.2) Abordagem errada do problema: a esquerda aborda os complexos problemas ambientais, incluindo os incêndios florestais, por meio de uma abordagem maniqueísta, ou seja, um conflito entre “o bem e o mal”, entre nós e eles, sendo o bem representado pelos portadores do ódio ao lucro e à economia de mercado, e o mal representado por todos os empreendedores que tentam desempenhar atividades econômicas lucrativas, especialmente o agronegócio.


O presidente Lula chegou a insinuar que se tratava de uma ação orquestrada da direita e do agronegócio para desgastar o seu governo. O presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco, também reproduziu essa ladainha.


Para a esquerda, a resolução do problema dos incêndios deve ser feita por meio de mais “Comando e Controle”. Daí advém a solução de endurecimento das penas, promulgada pelo Decreto Federal 12.189/2024, e, pasmem, a sugestão de confisco de terras onde ocorreram incêndios. Essa sugestão foi realizada pela ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, e pelo ministro do Supremo Tribunal Federal, Flávio Dino. Ele “pediu a realização de estudos sobre a possibilidade de expropriação de terras ou aplicações de restrições a propriedades em que sejam identificados desmatamentos ilegais via incêndios intencionais” (Estado de São Paulo, 23/09/2024). Isso é um evidente oportunismo para avançar a agenda socialista no país aproveitando-se do alarmismo criado pelo problema dos incêndios.


A abordagem maniqueísta das queimadas é contraproducente, ineficiente. Ela reforça a desconfiança e o conflito entre os atores sociais, o que dificulta a cooperação entre eles. Com isso, inibe o aumento do capital social, tão importante no processo de desenvolvimento socioeconômico e de resolução de problemas complexos. Ela deve ser, urgentemente, superada.


Para aqueles que querem enfraquecer ainda mais o direito de propriedade no país, recorremos a Craig Tribolet, em um artigo online, no qual aponta que “não há respostas fáceis para o problema das queimadas. É preciso realizar “uma análise cuidadosa para garantir que as soluções desenvolvidas estejam abordando a raiz do problema. É importante também notar que não se trata apenas de atribuir culpa (como prega a abordagem maniqueísta), mas de entender a complexidade de cada paisagem em seu próprio contexto social, econômico e ambiental”.


2.3) Demora na revisão da política pública: temos enorme dificuldade em rever políticas públicas. Os economistas não se cansam de apontar políticas sociais que não fazem o menor sentido e, mesmo assim, elas não são revistas. Infelizmente, essa é a realidade que também predomina na arena ambiental. A Política de Prevenção e Combate aos incêndios Florestais demorou cerca de 40 anos para começar a ser revista.


Ela “nasceu oficialmente” por meio do documento intitulado “Política e diretrizes dos parques nacionais do Brasil”, elaborado em 1970 por Alceo Magnanini, técnico do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF). Foi baseada em um manual traduzido dos Estados Unidos que propunha combater qualquer tipo de fogo, mesmo os de origem natural nos biomas dependentes do fogo. Sua base foi o paradigma do equilíbrio ecológico que já está superado, mas infelizmente continua embasando toda nossa legislação ambiental brasileira.


Isso tem fortes implicações. Um regime natural de fogo impede que o material orgânico se acumule e faz com que a paisagem seja um mosaico de vegetação com diferentes suscetibilidades ao fogo. Se eu elimino esses fogos naturais, o material orgânico se acumula e a paisagem se torna mais homogênea. Nessas condições, quando ocorre um incêndio, sua intensidade, severidade e área queimada serão muito maiores. Ou seja, os impactos são mais devastadores.


A proposta de Alceo Magnanini se consolidou como política pública e demorou mais de 40 anos para começar a ser revista. A partir do governo de Michel Temer, o Instituto Chico Mendes intensificou os estudos sobre o Manejo Integrado de Fogo em nossas unidades de conservação, mas a iniciativa ainda não ganhou a escala necessária. Somente em meados de 2024, quando o país já ardia em chamas, é que foi promulgada a Lei 14.944, que instituiu a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo. Ela terá importante papel para reduzir o problema dos incêndios florestais no futuro.


2.4) Os governos estaduais também não alocaram recursos suficientes: o grosso da capacidade de prevenção e combate aos incêndios florestais está na mão dos governos estaduais. Eles também foram alertados para a gravidade da seca em 2024. No entanto, devido à grave crise fiscal que a maioria dos estados enfrentam e ao elevado custo das estruturas de prevenção e combate aos incêndios florestais, eles também não se prepararam adequadamente e têm alto grau de responsabilidade na situação ocorrida em 2024.


3) O que podemos fazer, efetivamente, para minorar o problema das queimadas?


Em primeiro lugar, precisamos entender que não há soluções fáceis para esse problema. No entanto, nós, liberais/conservadores, podemos adotar diversas iniciativas inovadoras para minorar o problema.


Existem incêndios criminosos e estes devem ser combatidos na forma da Lei. No entanto, basear-se na abordagem maniqueísta e elevar as penas para incêndios, como feito pelo governo federal, é contratar a intensificação futura de conflitos com o setor do agronegócio. Sugiro que os liberais/conservadores devem buscar outras iniciativas como as descritas abaixo:


3.1) Superar a abordagem maniqueísta do problema das queimadas: a relação entre a sociedade e o meio ambiente deve ser abordada pela ótica dos sistemas complexos, mais especificamente dos sistemas socioecológicos complexos.


Por sua vez, esses tipos de sistemas apresentam os requisitos dos denominados problemas perversos ou capciosos (Wicked Problems), que “são caracterizados por alto grau de incerteza científica e profundo desacordo sobre os valores […]. A própria definição de um problema perverso está nos olhos de quem vê, ou das partes interessadas, e, portanto, não existe uma formulação correta para qualquer problema em particular […]. Consequentemente, não existe uma solução única, correta e ótima”.


Os incêndios florestais são um problema perverso e abordagens inovadoras e colaborativas são necessárias para seu endereçamento. Isso significa que o conjunto dos atores sociais envolvidos com o mundo rural tem de construir as soluções para o problema das queimadas por meio de redes de aprendizado que busquem identificar e abordar as causas-raiz das queimadas de forma respeitosa e colaborativa. Isso é o contrário do pregado pela abordagem maniqueísta discutida anteriormente.


A Lei 14.944/ 2024 e sua futura regulamentação darão a base legal para essas construções. Além disso, é necessário também que a abordagem de Comando e Controle seja complementada por uma filosofia de manejo adaptativo que permitirá maior flexibilidade nos ajustes às complexidades e incertezas que são inerentes aos problemas perversos.


Essa nova abordagem fomentará a cooperação entre os atores sociais envolvidos e contribuirá para aumentar a confiança entre eles. Isso desencadeará um ciclo virtuoso que levará ao aumento do capital social, tão importante para o processo de desenvolvimento socioeconômico e para a resolução, eficiente e eficaz, de problemas complexos tais como o das queimadas.


3.2) Implementar, em ampla escala, o manejo integrado do fogo: ele pode ser definido como “um conjunto de decisões técnicas e de ações direcionadas que buscam prevenir, detectar, controlar, conter, manipular ou usar o fogo em uma determinada paisagem para atender a metas e objetivos específicos”. Como relatado acima, a lei, que o instituiu, foi promulgada em meados de 2024. Ela propicia importantes instrumentos para endereçar o problema.


Num ambiente de confiança propiciado pelas abordagens dos sistemas complexos e dos problemas perversos, é possível reunir os diversos atores relacionados ao problema das queimadas e elaborar planos de manejo integrado do fogo que atendam às especificidades do contexto social, econômico e ambiental de cada região do país.


3.3) Disponibilizar recursos orçamentários e humanos para a prevenção e combate às queimadas: o setor público brasileiro, em todos os níveis, passa por uma séria restrição fiscal. Esse quadro não tem perspectivas de melhora no curto prazo. Mesmo assim, é preciso implementar planos e estruturas enxutas capazes de aplicar o manejo integrado do fogo, o que implica a disponibilização de recursos orçamentários e humanos. Políticas públicas ineficientes e ineficazes devem ser revistas para que se tenha espaço orçamentário para implementação das ações relacionadas ao manejo integrado do fogo.


Em resumo, a culpa pelo problema das queimadas em 2024 é dos governos estaduais e federal. Por outro lado, podemos minorar o problema, mas não podemos eliminá-lo totalmente. Só teremos sucesso nessa empreitada se a abordagem maniqueísta do problema for substituída pelas abordagens dos sistemas complexos e dos problemas perversos. Além disso, é necessária a disponibilização, por parte dos governos, de recursos orçamentários e humanos para implementar o manejo integrado do fogo.


Não esperamos que o governo federal, com seu viés de esquerda, implemente nossas propostas. No entanto, esperamos que os governadores de viés liberal, tais como Ratinho-Jr, Romeu Zema, Ronaldo Caiado e Tarcísio de Freitas, aproveitem essas sugestões e comecem a desenhar políticas públicas que serão eficientes e eficazes para minorar o problema das queimadas.


*Dr. Marcos Antônio Reis Araújo é biólogo, mestre e doutor em Ecologia, Conservação e Manejo de Vida Silvestre pela Universidade Federal de Minas Gerais. Foi Perito Nacional da Cooperação Alemã para o Desenvolvimento (GTZ – atual GIZ), realizou as avaliações de projetos ambientais do Banco Mundial e do banco alemão KfW. Foi consultor do Promata MG/ IEF/KfW, do Programa Áreas Protegidas da Amazônia – Arpa, do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio/ MMA), das Secretarias de Estado de Meio Ambiente de Minas Gerais, do Acre, Amazonas, Mato Grosso e da Secretaria de Controle Externo de Agricultura e Meio Ambiente do Tribunal de Contas da União (Secex Ambiental/ TCU). Atualmente é CEO da Startup PIAGAM e se dedica a área de inovação voltada para a gestão ambiental. É autor dos livros Unidades de Conservação no Brasil: da República à Gestão de Classe Mundial (2007); Unidades de Conservação no Brasil: o caminho da gestão para resultados (2012); Repensando a gestão Ambiental Pública no Brasil: uma contribuição ao debate de reconstrução nacional (2016) e Ecologia Liberal – uma poderosa doutrina para gestão ambiental no Brasil (2022).


[i] Segundo o IBGE, bioma é um conjunto de vida vegetal e animal constituído pelo agrupamento de tipos de vegetação que são próximos e que podem ser identificados em nível regional, com condições de geologia e clima semelhantes e que, historicamente, sofreram os mesmos processos de formação da paisagem, resultando em uma diversidade de flora e fauna própria.










PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/brasil-em-chamas-de-quem-e-a-culpa/

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