Deltan Dallagnol:
Nesta semana, por 7 votos a 4, o STF derrubou uma regra que buscava diminuir o risco de corrupção e tráfico de influência nos tribunais. A regra impedia que um julgador atuasse em processos nos quais uma das partes é cliente do escritório de advocacia de sua mulher ou filho. Não há mais impedimento ou suspeição nesses casos. A mudança favorece vários ministros que têm parentes com causas no tribunal e é muito preocupante.
Imagine a seguinte situação hipotética: que, dentre os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, um deles decida em algum momento se corromper, isto é, aceite propinas em troca de decisões favoráveis. Para facilitar, suponha que esse ministro corrupto se chame João. O ministro João é casado com Joana, advogada sócia de um grande escritório de advocacia em Brasília.
Essa hipótese está longe de ser absurda. A Lava Jato provou que muitos políticos poderosos se corromperam numerosas vezes e são eles que escolhem ou influenciam a escolha de ministros de tribunais. Não é absurdo imaginar que políticos que praticaram corrupção escolham, algumas vezes, julgadores igualmente corrompíveis. Some-se que é natural - e não há nada de errado nisso - que muitos julgadores tenham parentes trabalhando na advocacia.
Ainda no nosso exercício imaginário, suponha que um político corrupto - chamado, por hipótese, Maluf -, tenha centenas de milhões de reais desviados dos cofres públicos em contas no exterior. Para reverter condenações no STF, ou atrasar os processos até a prescrição, ele acerta o pagamento de propina de R$ 10 ou 20 milhões para que o ministro vote em seu favor, atrase o processo ou influencie os demais ministros nos bastidores.
Suponha que a propina é paga então por meio de um contrato de serviços advocatícios ou de consultoria entre Maluf e o escritório de Joana, a respeito de negócios ou causas que Maluf tem no mundo empresarial. Em seguida, Maluf paga os milhões pactuados travestidos de honorários advocatícios. Joana, é claro, não atua nas causas, para evitar suspeitas, mas recebe as propinas como “distribuição de lucros” ou “bônus corporativo”.
Assim, temos o crime perfeito: a corrupção dos envolvidos será praticamente impossível de ser comprovada, mesmo que o político Maluf quebre o silêncio e faça uma delação premiada. Como muitos serviços de consultoria ou de assessoria jurídica são usualmente verbais, é muito difícil alegar ou comprovar que não tenham sido prestados.
Desse modo, será possível aos advogados negar os crimes de maneira plausível ou alegar que uma eventual investigação seria criminalização da advocacia. Essa última alegação, aliás, derrubou toda a operação “Esquema S”, em que parentes de ministros foram acusados pela Lava Jato de tráfico de influência nos tribunais.
Não é só corrupção que pode acontecer. É muito difícil ser atendido por ministros de tribunais em Brasília, pois suas agendas são muito concorridas. Ser atendido e ouvido confere uma imensa vantagem estratégica a um advogado, o que é um ativo econômico. Clientes estão dispostos a pagar mais por isso. É difícil imaginar que um ministro não vá atender, a pedido da esposa ou filho, um colega do seu escritório de advocacia, seja no tribunal, seja num encontro casual.
Assim, com a decisão do STF, ficou mais difícil investigar ou comprovar qualquer falcatrua. Além disso, escancararam-se as portas para o tráfico de influência e a advocacia do acesso. A decisão é um atraso legal, moral e de governança para o nosso Judiciário já tão desgastado.
Desse modo, será possível aos advogados negar os crimes de maneira plausível ou alegar que uma eventual investigação seria criminalização da advocacia
“É o acasalamento perfeito, e que rende muito dinheiro”, resumiu a ex-ministra do STJ e ex-corregedora nacional de justiça Eliana Calmon, nesta semana, ao comentar a decisão do STF. “Naturalmente, existe uma divisão familiar: a mulher fica com o poder econômico nos escritórios de advocacia, e o marido fica com o poder político dentro do Poder Judiciário. E desta forma, eles ganham muito, e têm o poder na mão”, explicou a ministra. É ou não é um modelo de negócios perfeito?
A ministra Eliana era uma notória caçadora da corrupção no Judiciário e denuncia há anos o “filhotismo” nos tribunais superiores, que é como se chama o estranho fenômeno de filhos de ministros (ou esposas) que faturam alto em seus escritórios de advocacia, mesmo que em alguns casos eles não tenham experiência jurídica compatível com os milhões recebidos a título de honorários.
O julgamento que ampliou as oportunidades para crimes, ilícitos e imoralidades foi encerrado na segunda-feira. Votaram pelo “libera geral” os ministros Gilmar Mendes, Cristiano Zanin, Luiz Fux, Dias Toffoli, Nunes Marques e André Mendonça. Votaram contra essa imoralidade os ministros Edson Fachin, Rosa Weber, Roberto Barroso e Cármen Lúcia.
Os dois ministros que deram os votos da maioria, Gilmar Mendes e Cristiano Zanin, são casados com advogadas. A esposa de Zanin, Valeska Teixeira, assumiu integralmente o escritório e os casos milionários que tinha com o marido. Hoje, tem 14 casos tramitando no STF. A esposa do ministro Gilmar Mendes, Guiomar Feitosa, é sócia do Sergio Bermudes Advogados, um grande escritório com centenas de processos em trâmite no STF.
Outros ministros do STF têm filhos e esposas advogados, sem falar dos 33 ministros do STJ, dos desembargadores federais e estaduais espalhados pelos 27 estados da federação e dos milhares de juízes em todo o Brasil. Todos estão agora autorizados a julgar causas de escritórios de seus parentes.
Muitos são honestos e incorruptíveis. Contudo, a autorização do STF dá um ar de legalidade e moralidade para o que é inaceitável: dar vantagens para clientes do escritório dos parentes. Isso poderá ser feito sem qualquer questionamento. Será interessante observar - e não poder fazer nada - a explosão nos lucros dos escritórios de advocacia dos parentes de julgadores nos próximos anos.
Se tem alguém que ganhou nessa história, não foi a Justiça, e muito menos a credibilidade do Poder Judiciário. Quem venceu mesmo foi o filhotismo: a corrupção, o tráfico de influência, o compadrio e o favoritismo.
Deltan Dallagnol, Gazeta do Povo
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