por Flávio Gordon
A violência da qual os transativistas alegam ser vítimas não é exatamente similar à que acometia os negros no passado, pois inclui coisas como referir-se a eles com o pronome errado
“Quando la masa actúa por sí misma,
lo hace sólo de una manera, porque no tiene otra:
lincha”
José Ortega y Gasset
“Tribalismo é a resposta à imaturidade porque
permite ao homem permanecer
imaturo com a sanção de seu grupo”
Eric Voegelin
Aconteceu em 14 de novembro de 1960, em Nova Orleans, Estados Unidos. Nesse dia, Ruby Bridges, uma menina negra de 6 anos de idade, pisou pela primeira vez numa escola destinada exclusivamente a crianças brancas, como determinavam as leis de segregação racial então vigentes. Ao fim do dia, revoltados com a presença de Bridges naquele espaço reservado “only for whites” (como postulava o odioso jargão da época), uma multidão de aproximadamente mil racistas se manifestou violentamente em frente à escola. Aos berros, exigiam a expulsão imediata de Bridges. Muitos chegaram a cuspir na criança, que também foi alvo de ameaças de morte.
Seis décadas depois, uma nova campanha pelos direitos civis irrompe na América e no mundo: o transativismo. E aqui uso deliberadamente transativismo no lugar de transgenderismo, para enfatizar o caráter político-ideológico da causa, a qual, além de incluir entre os adeptos um sem-número de indivíduos não trans (ou “cisgênero”, como se diz no jargão militante), também exclui pessoas trans que não a corroboram. Seja como for, a inserção do movimento trans no rol da luta pelos direitos civis é hoje uma questão inegociável para as elites culturais do Ocidente, tendo sido consagrada por ninguém menos que Joe Biden, o qual, em janeiro de 2020, resumiu num tuíte a posição hegemônica entre o beautiful people: “Sejamos claros! A igualdade para os transgêneros é a grande questão de direitos civis do nosso tempo. Não há espaço para hesitação quando falamos de direitos humanos básicos”.
Em 25 de março, num parque na cidade de Auckland (Nova Zelândia), onde proferiria uma palestra sobre os direitos das mulheres, Posie Parker foi cercada por uma multidão raivosa de ativistas trans, que a xingaram, a ameaçaram de morte e lhe cobriram com molho de tomate
Mas, quando comparamos os dois movimentos de direitos civis — o dos negros, nos anos 1960, e o dos transativistas, nos anos 2020 —, notamos certas diferenças saltando aos olhos. Em primeiro lugar, o modelo de ação política do transativismo não parece ser o pacifismo altivo de Martin Luther King, mas, ao contrário, a pregação violenta, revolucionária e histriônica de um Malcolm X ou dos Panteras Negras. Em segundo lugar, a violência da qual alegam ser vítimas não é exatamente similar à que acometia os negros no passado, pois inclui coisas como referir-se a eles com o pronome errado, pedir (mesmo educadamente) para que usem o banheiro compatível com o seu sexo biológico, ou opinar contrariamente à presença de homens biológicos (conquanto identificados como mulheres) nos esportes femininos. Diante dessas contrariedades, os transativistas têm reagido com violência e fúria. Frequentemente em bando.
Alguns casos viralizaram na internet. Na Universidade de Brasília (UnB), um transativista ameaçou de agressão física uma aluna que, além de pedir que ele saísse do banheiro feminino, cometeu o pecado de tratá-lo por “cara”. “Eu não são sou um cara. Não tem nada que me impeça de meter a mão na sua cara” — berrou, transido de ódio, o homem que se sente mulher. Reação semelhante teve um transativista na cidade de Albuquerque (Novo México, EUA). Quando o atendente de uma loja o tratou inadvertidamente por “senhor”, em vez de “senhora”, o homem teve um ataque de fúria. Sentindo-se mortalmente violentado, agiu de modo simetricamente inverso ao de Ruby Bridges: gritou, xingou, chamou o atendente para a briga, e saiu chutando produtos do estabelecimento. Em suma: armou aquilo que, no Brasil, se conhece popularmente como “barraco”. Episódios semelhantes se sucedem dia após dia, num clima de opinião cada vez mais propício à histeria coletiva.
Mas a diferença entre o transativismo e a campanha pelos direitos civis dos negros fica ainda mais evidente ao lembrarmos de dois eventos recentes, no qual mulheres críticas ao movimento foram cercadas, silenciadas e agredidas por uma turba de transativistas. Foi o caso, por exemplo, da britânica Kellie-Jay Keen-Minshull, também conhecida como Posie Parker, uma militante feminista. Em 25 de março, num parque na cidade de Auckland (Nova Zelândia), onde proferiria uma palestra sobre os direitos das mulheres, Parker foi cercada por uma multidão raivosa de ativistas trans, que a xingaram, a ameaçaram de morte e lhe cobriram com molho de tomate. Sob escolta policial, ela teve de fugir às pressas do lugar, interrompendo a sua turnê intitulada “Deixem as mulheres falarem”. Ali, em Auckland, os transativistas não deixaram.
Dias depois, deu-se nos EUA um episódio parecido, tendo por vítima a campeã universitária de natação Riley Gaines, uma jovem de 22 anos. Na San Francisco State University, onde havia ido palestrar contra a participação de homens biológicos nos esportes femininos, Gaines foi acossada por uma turba iracunda de transativistas, que, acusando-a de “transfobia”, por pouco não a linchou. Refugiando-se durante mais de três horas numa sala embarricada da universidade, Gaines conseguiu escapar com vida, não sem antes ser atingida por socos desferidos por outro homem que se sente mulher, e que, com base nesse sentimento, reivindica o direito de bater em mulheres que, mais do que se sentir, de fato o são.
Compare-se mais uma vez o caso da menina negra Ruby Bridges com esses episódios, que Biden e seus companheiros ideológicos descrevem como “a questão de direitos civis do nosso tempo”, equiparando-a, portanto, à luta contra a segregação racial. Há, entre os dois eventos, tamanha inversão das posições respectivas de vítima e agressor, que só mesmo uma mente possuída por ideologia poderia reuni-los na mesma prateleira dos “direitos civis”. Ora, nos exemplos supracitados, são justamente os indivíduos críticos dos transativistas que estão em condição similar à de Bridges: cercados, ameaçados, xingados, cuspidos e agredidos por uma turba furiosa. Os agressores são os transativistas eles próprios, os quais, na situação social de linchamento, ocupam a posição linchadora. Trata-se da mesmíssima posição outrora ocupada pelos racistas brancos que queriam linchar a menina negra, cuja mera presença os ofendia de morte, soando-lhes como uma violência intolerável.
Resta-nos ainda investigar a origem dessa suscetibilidade patológica, capaz de transformar os transativistas, quando tomados individualmente, em pessoas agressivas com os nervos à flor da pele, e, quando tomados coletivamente, numa massa de linchadores. Sobre que frágeis fundamentos se sustenta uma persona política capaz de colapsar emocionalmente diante de um pronome indesejado? Quais são as premissas que o transativismo não permite serem questionadas? Que realidade ameaçadora é essa que buscam recalcar na base da gritaria e da violência, e cuja mera enunciação parece “ferir-lhes a existência”? Essas são algumas das perguntas que tentaremos responder no próximo artigo.
Revista Oeste
publicadaemhttp://rota2014.blogspot.com/2023/04/o-que-o-transativismo-tem-ver-com.html
Emblemático da segregação racial na América dos anos 1960, quando os negros sofriam toda sorte de violência física e moral, o episódio foi um dos estopins para a célebre campanha dos direitos civis. Encarnada pelo universalismo de Martin Luther King Jr., como se sabe, a vertente mais consagrada do movimento pregou a resistência pacífica ao racismo, apostando que a vitória política viria do contraste entre a fortaleza moral dos ativistas negros e a virulência doentia dos segregacionistas brancos. De certa forma, a postura altiva da pequena Bridges, que enfrentou com notável impavidez os insultos e as agressões, já fornecera o modelo dessa linha de ação.
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