Percival Puggina
A história de cada um de nós começa muito antes de nosso nascimento. Ela é a história de nossos pais e dos pais dos nossos pais, e assim vai regressivamente. Ela inclui a cidade onde nascemos, que passa a constar de nossos documentos, junto com os nomes de nossos pais. Mesmo os pés de alface de um canteiro têm a história do canteiro, a história de seu plantio e dos cuidados que recebem. Não é diferente na história de um país e de seu povo.
“Existe um modo de fazer a história e um modo de contar a História” (Betinho). Essa frase nos traz à celebérrima questão das narrativas. E da guerra das narrativas.
Para não ser manipulado pelas narrativas, tantas vezes desenvolvidas por filósofos e historiadores marxistas, é preciso mergulhar no tempo e ir atrás das raízes mais remotas dos fatos. Percorrer suas linhas de continuidade e suas rupturas. Evita-se, assim, a interveniência de conhecido filósofo alemão do século XIX que não veio para interpretar o mundo, mas para tumultuar o mundo. E o jeito de contar a história se presta admiravelmente para que o futuro tome o rumo pretendido por quem a conta.
Impossível, para mim, imaginar que a história do Brasil comece a ser contada a partir do dia 22 de abril de 1500, ou do dia 9 de março daquele ano, quando a Praia do Restelo acumulava multidão formada pela numerosa tripulação das 13 naus, 1,5 mil homens, seus familiares, o Príncipe perfeito (D. João II), sua Corte e parte expressiva da população de Lisboa. À época, 50 mil habitantes.
O Brasil não foi um achado. Foi buscado. E quem o buscou, sabendo em que direção navegar, foi levado pelas mãos do Senhor da História.
Os experientes navegadores portugueses sob comando de Cabral eram peritos no uso dos GPSs da época: a bússola, a balestilha e o astrolábio de Abrahão Zacuto. Tanto assim que nos primeiros dias de maio voltaram ao mar na direção sudeste e mesmo perdendo quatro embarcações com os temporais enfrentados no trecho entre maio e junho, ultrapassaram o Cabo da Boa Esperança.
***
Daqueles tempos heroicos, quando homens bravos cruzaram os mares sobre cascas de noz, falam com poesia e verdade os versos de Fernando Pessoa:
Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!
Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.
Isto fala comigo! Eis aí o belíssimo idioma que aprendemos da voz das nossas mães. Nessas linhas fala a fé cristã que delas recebemos e que esteve confiada ao pequeno Portugal na expansão da “Fé e do Império”, como conta Camões.
Eis também o motivo pelo qual o Descobrimento é muito mais do que a posse da terra e o povoamento do continente chamado Brasil. É algo que nos congrega acima de qualquer outro fator de unidade. São longos os fios com que se foi tecendo e bordando a história da nossa fé e do nosso idioma. Eles nos conectam com lusófonos e cristãos mundo afora!
Um dia percebi, com espanto, o quanto devemos a algo tão remoto quanto à vitória de Roma na Terceira Guerra Púnica, 146 AC. Ao derrotar Cartago e viabilizar a chegada das legiões romanas à Península Ibérica e à sua população de origem celta, ela se tornou história do Brasil.
Sim, porque com as legiões, veio o latim e com a conversão de Constantino, o cristianismo se torna religião do Império. Um século e meio depois, os bárbaros cruzam o Reno e quando suevos e visigodos entram na Península Ibérica, o idioma deles vai se misturar com o latim vulgar e dar origem ao nosso idioma e ao espanhol. E entra o arianismo que será superado pela obra evangelizadora de extraordinários bispos e santos medievais.
O Descobrimento do Brasil é ponto culminante de um projeto do gênio político português, viabilizado pela criação da Ordem de Cristo. Entendendo a posição geográfica do país na Europa, sua reduzida população e seu pequeno e montanhoso território, Portugal viu no mar o seu destino e abriu velas aos ventos. A História Universal ganhou novos caminhos. As Grandes Navegações persistem até estes dias como a maior aventura da humanidade. Delas, o Brasil é imensa realização.
Até a Revolução do Porto e as Cortes Gerais da Nação Portuguesa (1821), ser brasileiro era ser português. Desde o século XVI, índio batizado era cidadão português. Além do pau-brasil, não havia aqui riqueza a ser explorada. Na contabilidade da Coroa, a tarefa de proteger o território de invasores, povoá-lo e criar nestas lonjuras o “estado do Brasil”, um dos estados de Portugal, custava mais do que rendia. A cana de açúcar foi trazida para cá. Era preciso plantá-la para colher. A extração do ouro, atividade privada, exigia bater muita areia de rio para ser encontrado. A Coroa cobrava o “quinto” (imposto de 20%, fácil de sonegar e operoso de arrecadar). Quando foi encontrado em maior volume, fez a riqueza de São Paulo, Rio de Janeiro e, entre outras, de Vila Rica (atual Ouro Preto), Vila do Carmo (Mariana), Sabará, Caeté, São João Del Rei.
Como entender que herdeiros de uma história tão rica possam conviver com esse complexo de vira-latas? Com um sentimento que nos faz rastejar culpas e remorsos, num arrastado estuário de vilanias e maldições? Qual povo pode orgulhar-se de cada página de seu diário?
Se não vemos dignidade em nossa história, dificilmente a veremos em nós e muito mais dificilmente a veremos nos demais. Seremos pichadores de nós mesmos.
PUBLICADAEMhttps://www.puggina.org/artigo/o-descobrimento-e-os-pichadores-da-historia__17782
0 comments:
Postar um comentário