Jornalista Andrade Junior

domingo, 28 de agosto de 2022

'Pedro II e a professorinhas',

 por Augusto Nunes


William Bonner e Renata Vasconcellos transformaram o estĂșdio da Globo em palanque do PT


Voz de carola que acabou de comungar na missa das oito, jeito de professorinha imunizada por uma vacina que expulsa a tentação de cometer o menor dos pecados veniais, Renata Vasconcellos quer saber se Jair Bolsonaro Ă© atormentado por surtos de remorso. O inquirido, lembra a inquisidora, nĂŁo se limitou a exterminar mais de 600 mil brasileiros mortos pelo vĂ­rus chinĂȘs: tambĂ©m imitou pessoas afetadas pela falta de ar. O acusado nĂŁo vai ao menos ajoelhar-se no milho e pedir desculpas a todas e todos, ao som de dolorosas pancadas no peito? Na resposta, Bolsonaro rejeita o palavrĂłrio farisaico. Com a expressĂŁo de quem carrega nos ombros todas as dores da nação, Renata reapresenta a cobrança.

Ao lado da parceira de palco, William Bonner exercita com caretas, micagens e sorrisos sarcĂĄsticos os mĂșsculos da face, emoldurada pela barba alvinegra. Caprichando na pose de Dom Pedro III de novela, ele abrira o que deveria ser uma sabatina com uma pergunta que consumiu 110 palavras. (Com 272, comparou o site Poder360, Abraham Lincoln produziu o Discurso de Gettysburg, uma das maravilhas da retĂłrica universal.) O belicoso palavrĂłrio inaugural informou aos espectadores que nĂŁo assistiriam a uma entrevista. Testemunhariam o parto de outra invenção brasileirĂ­ssima: um Pronunciamento Ă  Nação de William Bonner, com a participação da esforçada coadjuvante.

A dupla ocupou mais de 15 minutos dos 40 reservados ao show de arrogĂąncia. Nos menos de 25 restantes, Bolsonaro suportou com serenidade a sequĂȘncia de provocaçÔes, apartes, deboches e outras formas de grosseria planejada para que o alvo sucumbisse a algum ataque de nervos. Tal hipĂłtese, se consumada, ampliaria o acervo de provas de que Bolsonaro Ă© golpista de nascença. O truque nĂŁo funcionou. Encerrado mais um ato da Ăłpera do jornalista malandro, consolidou-se a certeza de que, para impedir seu Grande SatĂŁ de conseguir um segundo mandato, os soldados de Lula aquartelados na Globo acham pouco assassinar a verdade. Vale rigorosamente tudo na guerra que transformou em rotina a tortura dos fatos.

Vale, por exemplo, negar ao atual presidente da RepĂșblica deferĂȘncias que contemplaram Lula e Dilma Rousseff. Na campanha eleitoral de 2006, o governante enredado no escĂąndalo do MensalĂŁo foi entrevistado por William Bonner e FĂĄtima Bernardes no PalĂĄcio do Planalto. Em 2014, com PatrĂ­cia Poeta no lugar de FĂĄtima, Dilma Rousseff recebeu no PalĂĄcio da Alvorada a dupla do Jornal Nacional. É assim que se faz com um chefe do Poder Executivo que tenta reeleger-se, recitou Bonner em ambas as ocasiĂ”es. Por que a norma deixou de vigorar sĂł neste ano? Porque no reino dos Marinho o presidente Bolsonaro Ă© tratado como usurpador desde o momento em que se elegeu presidente da RepĂșblica por vontade da maioria do eleitorado brasileiro.

Renata Vasconcellos, na sabatina com Jair Bolsonaro (Ă  esq.); e na entrevista com Lula | Foto: Reprodução/Redes sociais

Bonner jura que, logo depois da reeleição de Dilma, ficou estabelecido que nenhum candidato seria entrevistado fora do estĂșdio no Rio, fosse qual fosse o cargo que ocupa. Como a campeĂŁ de audiĂȘncia achou desnecessĂĄrio noticiar a decisĂŁo, e como Michel Temer nĂŁo tentou continuar no cargo em 2018, sĂł em julho deste ano Bolsonaro soube que seria a primeira vĂ­tima da abolição da regra. Logo no começo da sabatina, tambĂ©m saberia que a mudança nĂŁo se restringira Ă  troca de cenĂĄrio. Do primeiro ao Ășltimo momento da permanĂȘncia do convidado no territĂłrio hostil, os anfitriĂ”es mandaram Ă s favas todas as normas que regem entrevistas jornalĂ­sticas.

O bĂȘ-ĂĄ-bĂĄ da imprensa ensina que entrevista nĂŁo Ă© interrogatĂłrio; que o entrevistador pergunta e o entrevistado responde; que espectadores, ouvintes e leitores estĂŁo interessados nĂŁo no que acha o entrevistador, mas no que pensa o entrevistado; que o direito de rĂ©plica nĂŁo autoriza o bate-boca; que o caminho entre a primeira palavra e o ponto de interrogação deve ser percorrido em no mĂĄximo 30 segundos; que qualquer pergunta, da mais banal Ă  especialmente delicada, precisa ser feita num tom de voz civilizado. Demitidas jĂĄ no inĂ­cio da sabatina com Bolsonaro, essas e outras obviedades foram ressuscitadas na noite de terça-feira, quando chegou a vez de Ciro Gomes. A versĂŁo 2022 do coronel de grotĂŁo foi dispensada de recorrer ao canhĂŁo de baixarias, obscenidades e abjeçÔes retĂłricas que aciona com frequĂȘncia patolĂłgica desde a infĂąncia polĂ­tica.

Ciro foi desarmado pelo tratamento pontuado por amabilidades, sorrisos, silĂȘncios e outras demonstraçÔes de simpatia reservadas a visitantes bem-vindos. Teve seis minutos a mais que Bolsonaro para promover o tedioso desfile de cifras e promessas tĂŁo verossĂ­meis quanto uma cĂ©dula de trĂȘs reais. Na tentativa de apresentar-se como desmatador do caminho do meio, desenhou o atalho que encurta a chegada ao penhasco. Bonner e Renata ouviram com o coração em descompasso os ataques a Bolsonaro, e contemplaram com cara de paisagem as crĂ­ticas a Lula. O espetĂĄculo da cumplicidade explĂ­cita seria apresentado na quinta-feira, durante a sabatina com Lula. A dupla do Jornal Nacional fez o que pĂŽde para confirmar que o estĂșdio da Globo virou comitĂȘ eleitoral, promovida a palanque de Lula ao longo da sabatina de araque. O que se viu foi um comĂ­cio da alma viva mais pura do planeta, como garante o ex-presidiĂĄrio tĂŁo orgulhoso do alentado prontuĂĄrio policial que se refere a si prĂłprio na terceira pessoa do singular.

Liberado para mentir sem apartes pelo comportamento submisso dos entrevistadores e pela suavidade das perguntas, Lula discursou como se lidasse com um bando de idiotas

O setentĂŁo engaiolado por ladroagem e lavagem de dinheiro jĂĄ se comparou a Juscelino Kubitschek, GetĂșlio Vargas, Tiradentes e Jesus Cristo. Para fazer de conta que foi preso injustamente por juĂ­zes perversos e cruĂ©is procuradores federais, apareceu na Globo pronto para desempenhar o papel de Nelson Mandela reencarnado. A fantasia animou o monarca de novela e a doce professorinha a enxergarem num vigarista setentĂŁo a versĂŁo nativa do estadista sul-africano. No curto espaço ocupado por perguntas sobre a roubalheira institucionalizada pelos governos do PT, Bonner fez a ressalva bajulatĂłria: “O senhor nĂŁo deve nada Ă  Justiça”. Renata atribuiu a Bolsonaro o nascimento do CentrĂŁo que sempre garantiu ao sabatinado o controle do Congresso. E os dois endossaram com o silĂȘncio que consente o desfile de fake news patrocinado pelo entrevistado.


Bonner fingiu ignorar que Lula estĂĄ em liberdade nĂŁo por ter sido inocentado, mas pela chicana parida pelo ministro Edson Fachin e avalizada pela maioria do Supremo Tribunal Federal. Ao inventar a Lei do CEP, que transferiu para BrasĂ­lia os processos que envolveram o ex-metalĂșrgico que enriqueceu sem emprego fixo, o rĂĄbula de toga sentenciou Ă  morte por prescrição de prazo decisĂ”es de nove juĂ­zes de trĂȘs instĂąncias que condenaram Lula a uma longa temporada na cadeia pelas negociatas expostas nos casos do triplex do GuarujĂĄ e do sĂ­tio em Atibaia. Na sabatina, o termo MensalĂŁo foi mencionado uma Ășnica vez. PetrolĂŁo, nenhuma.

Premiado pelo Jornal Nacional com um espaço de tempo de resposta superior ao concedido a Bolsonaro e Ciro, liberado para mentir sem apartes pelo comportamento submisso dos entrevistadores e pela suavidade das perguntas, Lula discursou como se lidasse com um bando de idiotas. Jogou a crise econĂŽmica no colo de Dilma, derramou-se em declaraçÔes de amor ao ex-antagonista que agora o acompanha na tentativa de voltar ao local do crime e prometeu acabar com o pĂąntano da corrupção em que sempre nadou de braçada. O barulho das panelas foi de bom tamanho. O som seria ensurdecedor se houvesse no estĂșdio um detector de mentiras.

Sabe-se que Lula, ao virar dirigente sindical em 1977, abandonou ao lado do torno mecĂąnico a honradez e qualquer espĂ©cie de escrĂșpulo. Soube-se agora que a dupla do Jornal Nacional, por motivos ainda insondĂĄveis, resolveu poupar-se do sentimento da vergonha e romper relaçÔes com o jornalismo Ă©tico. As sabatinas escancararam os modos e mĂ©todos usados por gente que atira a uma lata de lixo quaisquer compromissos com a verdade.


Revista Oeste















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