por Guilherme Fiuza
O governador de Nova York disse que as pessoas devem se preparar para viver confinadas em suas casas por meses. “Distanciamento social e conexão espiritual”, formulou Andrew Cuomo, numa coletiva sobre o combate ao coronavírus. Aí surgiu num telão Robert De Niro mandando todo mundo ficar em casa porque ele está “de olho”. Volta para o governador – e o vemos rindo da tirada do astro de Hollywood. Tudo normal.
Já que a massa catatônica assiste a esse estranho ritual se imaginando diante de um homem sensível e diligente que está ali endurecendo sem perder a ternura para salvar vidas, alguém tem que fazer o serviço sujo de estragar o transe: Sr. Cuomo, isso não vai acontecer. O mundo não viverá meses de confinamento doméstico nem se estourar uma guerra nuclear.
Mas vamos ficar no caso do coronavírus, que ainda não provocou uma guerra. Nove meses de confinamento populacional, como chegou a admitir o governador de NY – projetado para o mundo todo –, significa contratar uma tragédia humanitária muitas vezes maior que a da atual epidemia. Vamos repetir, para que não haja engano: uma tragédia MUITAS vezes maior. Quantas vezes maior? Peçam para algum assessor graduado do Sr. Cuomo (que saiba fazer conta) montar a estimativa. Não vale o De Niro.
Essa conta começa mais embaixo – em latitude e em escala social – com os mais pobres. Em países distantes como o Brasil, por exemplo, as cidades fantasmas já estão gestando a devastação – entre as pessoas (muitas pessoas) que não podem consertar um cano ou pintar uma parede pela internet, que não têm para quem vender seus biscoitos na rua ou na praia, para quem, portanto, a tradução de roumeófice é barriga vazia. Não têm rede de proteção social, não têm grana pro remédio da mãe doente, que vai morrer amanhã, ou talvez hoje, fora das estatísticas.
Essa bomba atômica não elimina a necessidade das defesas contra o coronavírus. Apenas não pode ser ignorada em qualquer plano que pretenda salvar vidas. As mortes pelo garrote social não são uma abstração. Não são redutíveis a um dilema cínico entre economia e saúde. Tudo é vida. Quer morrer de quê?
A devastação humanitária que será provocada pelo confinamento de populações inteiras em casa por meses está sendo negligenciada por inúmeros planejadores e autoridades. O fantasma da epidemia é totalitário – criou em grande parte da população uma percepção unidimensional do perigo, com o pensamento substituído pelo pavor. Então vamos dizer com todas as letras, pedindo licença à patrulha linchadora: mandar todo mundo ficar em casa por meses é um plano assassino. Mais letal que o pior cenário imaginável para a epidemia do coronavírus. E agora?
Enquanto deixamos essa reflexão para os talibãs do fica em casa indefinidamente até o corona sumir da paisagem, vamos trazer outra perspectiva subversiva: um “lockdown” geral de meses não vai matar mais gente do que o coronavírus só em 2020. Vai matar mais gente do que a epidemia atual por vários anos. E vai começar pelos pobres, mas vai pegar todo mundo.
A depressão mundial sem precedentes vai espalhar uma epidemia de fome e violência – fora o tsunami de doenças e pragas que sempre se expandem a qualquer avanço da escassez de meios para combatê-las. Se você está preocupado hoje com o colapso das redes de saúde pública, você tem a obrigação de procurar saber o que vai acontecer com elas após a maior depressão econômica da história da humanidade. E você não tem o direito de pensar em um colapso para depois pensar no outro. Não dá tempo.
Cresce entre médicos e analistas responsáveis a tese da paralisação “vertical” das atividades sociais – concentrando as medidas de isolamento na população idosa e grupos de risco e permitindo a circulação (com o protocolo completo do bloqueio de contágio) dos que estão fora da faixa vulnerável. Quanto mais o coronavírus se espalhar pela população que só terá sintomas leves ou sintoma nenhum (a imensa maioria), mais rápido será o fim da epidemia. Ela só vai decair depois de se expandir.
Governantes e autoridades do mundo todo sabem disso. E estão com medo da execração por parte dos que estão apavorados. Vamos ver o que vai acontecer primeiro: 1. a tomada de consciência da opinião pública (vencendo o pânico); 2. a revolta dos confinados; ou 3. um surto de coragem dos tomadores de decisão.
Revista Oeste
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