por Selma Santa Cruz (Os R$ 80 bilhões desperdiçados nos estádios para a Copa do Mundo e outros tantos zilhões perdidos no ralo da corrupção das últimas décadas comprariam leitos de UTI, respiradores artificiais...)
Brasileiros de bom senso tentam calcular o que os cerca de R$ 80 bilhões desperdiçados na reforma e construção de estádios para a Copa do Mundo e outros tantos zilhões perdidos no ralo da corrupção das últimas décadas comprariam em termos de leitos de UTI e respiradores artificiais
Dos inúmeros memes gerados pela pandemia, chama atenção o atribuído a uma bióloga espanhola, sugerindo que convoquemos astros do futebol, como Messi e Cristiano Ronaldo, para providenciar um remédio contra a covid-19. Afinal, argumenta, não é a eles que a sociedade destina as mais polpudas remunerações, enquanto reserva aos cientistas e pesquisadores da saúde retribuição e prestígio infinitamente menores?
A comparação vale, é claro, para inúmeros outros descompassos nessa questão – como entre ídolos da música pop e médicos da rede pública, ou professores e estrelas de cinema, por exemplo. Sem falar no abismo, aqui no Brasil, entre os políticos e a cúpula privilegiada do funcionalismo e aqueles da base da pirâmide que realmente merecem ser chamados de servidores públicos.
Só que esse disparate, como tantos temas pouco glamorosos como saneamento e desnutrição, por exemplo, não conseguia atrair, até agora, a atenção que merece. Estávamos entretidos demais com debates considerados mais prementes, a exemplo de banheiros transgêneros, apropriação cultural e revisão de livros escolares para adequá-los ao discurso politicamente correto.
Bastou, contudo, o mundo entrar neste inimaginável modo pause para outro vírus, o da reflexão, começar a infectar saudavelmente as mentes. Com milhões de pessoas confinadas, conectadas, e de repente ociosas, surge inescapavelmente a questão: o que é realmente importante na vida? Quais deveriam ser nossas prioridades como indivíduos e sociedade?
Pois, diante da mais absoluta indefinição sobre o que o futuro nos reserva, apenas uma certeza prevalece. O mundo pós-pandemia será diferente do que o que temos hoje. E, embora não tenhamos ideia do como, sabemos que ele está sendo moldado agora, pelas decisões políticas e práticas que serão tomadas e as lições que aprenderemos.
No vasto leque que vai das mais catastróficas distopias até a esperança dos otimistas inveterados, há muita asneira sendo disseminada. Para os ambientalistas, quem está nos castigando com essa lição amarga é a natureza agredida – embora não esclareçam se as epidemias dos séculos passados também podem ser explicadas pela emissão de gases de efeito estufa. Já na visão dos místicos, é o universo que nos obriga a retomar um equilíbrio cósmico supostamente perdido.
Os anticapitalistas apressam-se a culpar a ganância do mercado, que consideram intrinsecamente malévolo, um ente demoníaco, feito as bruxas, e não o reflexo da própria ação humana, organizada de forma livre ao longo da história.
Enquanto os brasileiros de bom senso tentam calcular o que os cerca de R$ 80 bilhões desperdiçados na reforma e construção de estádios para a Copa do Mundo e outros tantos zilhões perdidos no ralo da corrupção das últimas décadas comprariam em termos de leitos de UTI e respiradores artificiais.
Felizmente, temos acesso também a mentes brilhantes que sugerem algumas reflexões críticas como lição de casa para a quarentena. Será que o mundo não estava mesmo acelerado, doentio e anacrônico demais? A demandar uma revisão radical de prioridades, paradigmas e práticas?
Vários estudiosos da disrupção digital, como Manuel Castells, Pierre Lévy, Don Tapscott e Peter Diamandis, entre outros, vêm há tempos alertando que ela iria tornar obsoletas quase todas as instituições e sistemas sociopolíticos tradicionais. O trabalho inspirado nas linhas de montagem tayloristas e o ensino pautado no acúmulo de informações, entre outros modelos da era industrial, por exemplo, e até mesmo a democracia representativa, já não fariam mais sentido numa sociedade conectada em rede, que dispensa intermediações e funciona como um grande cérebro coletivo.
Seriam insustentáveis, da mesma forma, o hiperconsumo e a obsolescência programada dos produtos industriais, uma das faces perversas da prosperidade capitalista das últimas décadas, porque geram imenso desperdício de recursos não renováveis e outros impactos ambientais severos.
Ou seja, apesar de seu incalculável custo humano e econômico, que ainda nem conseguimos dimensionar, a pandemia poderia representar uma oportunidade única para tentarmos reinventar, para melhor, o mundo como o conhecemos. Afinal, estamos em meio a uma revolução. E a história ensina que podemos saber como elas começam, mas nunca como terminam.
Revista Oeste
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