Jornalista Andrade Junior

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Bergoglio e a santa ousadia,

 por Marcelo Tognozzi

Papas não são santos. Nunca foram. Nem mesmo são Marcelo I, torturado e morto pelos romanos no ano 309, ou lendário João Paulo 2º dos nossos tempos, a quem tive oportunidade de conhecer rápida e pessoalmente graças ao meu amigo D. Lucas Moreira Neves, então cardeal primaz em Salvador.


D. Lucas era um homem sereno, extremamente culto, dono de um texto brilhante, mas acima de tudo um político. Entendia de política tanto ou mais do que de teologia.
Durante uma convivência de mais e 2 anos, aprendi com D. Lucas a entender a política eclesial, a relevância dos cardeais dentro e fora da Igreja. Quem assistiu ao filme 2 Papas, do diretor Fernando Meireles, percebeu como Joseph Ratzinger, o Papa Bento 16, construiu o caminho para fazer seu sucessor em vida após uma renúncia planejada. Renúncia de papa é algo raríssimo e ao longo dos quase 2 mil anos aconteceu 22 vezes antes de Bento 16.
No filme de Meireles, Ratzinger diz a Bergoglio que a igreja precisa de uma renovação com alguém capaz de imprimir uma visão um pouco menos conservadora e, com isso, atrair fiéis. Sua ação política visava prioritariamente a sobrevivência da Igreja, buscando seu sucessor em alguém que conseguiu se reinventar depois de acusado de cumplicidade com a ditadura argentina dos anos 1970.
Bergoglio foi político hábil como vigário, monsenhor, bispo e cardeal. É um personagem com a bagagem de quem viveu a Argentina do peronismo, dos comícios de Evita, a dureza do regime militar do general Jorge Rafael Videla e a desventura das Malvinas, último suspiro de um governo então comandado pelo general Leopoldo Galtiere.
Bergoglio testemunhou tudo isso. Tinha seus canais no governo, assim como D. Eugenio Salles, cardeal do Rio de 1971 a 2001, construiu suas pontes com os presidentes e próceres do regime de 1964. Embora D. Helder fosse o bispo da moda, odiado pelos militares e conservadores, alguém precisava falar com o Poder, influir, e D. Eugênio soube fazer essa política como poucos para alívio do papa Paulo 6º. Como Bergoglio, foi político. Jamais santo.
Uma vez eleito papa, Jorge Bergoglio adotou o nome de Francisco e procurou com atitudes mostrar que era digno daquele nome. A começar pela recusa em trocar seus velhos sapatos por calçados de grife e dispensando os adornos de ouro. Quis mostrar ao mundo que o Vaticano era comandado por um homem simples e inaugurou um novo estilo de fazer política, exatamente tudo o que seu antecessor e padrinho imaginou. Num mundo cada vez mais polarizado entre progressistas e conservadores, o papa Bergoglio tem batido ora no cravo, ora na ferradura.
Ao mesmo tempo em que recebeu o ex-presidente Lula, condenado por corrupção, os ditadores Nicolas Maduro e Fidel Castro, foi capaz de enviar rosários para militares presos na Argentina por crimes de lesa humanidade praticados durante a ditadura militar (1976-1983).
O que o papa ainda não fez foi adotar uma política dura e eficiente contra males como a pedofilia, pecado com muitas vítimas e pouca ou nenhuma punição. Ou as investigações sobre lavagem de dinheiro e outras diabruras envolvendo o Banco do Vaticano e meia dúzia de ricos pecadores. Transparência e determinação são virtudes essenciais num mundo conectado. Não basta sair distribuindo bênçãos pelo Twitter.
Bergoglio tem cumprido à risca o figurino desenhado pelo conservador Ratzinger, inclusive nos limites à ousadia, num estilo muito diverso do santo inspirador do seu nome papal. São Francisco sempre foi homem de atitudes e totalmente desvinculado da política. Seu legado é o de que ninguém pratica o bem sem ousar se impor. Num mundo onde a ira santa sempre deu ibope, ele valorizou a santa ousadia.
Receber Lula ou qualquer outro pecador faz parte das atribuições de quem luta para permanecer como ator relevante numa era de confrontos políticos cada vez mais densos e intensos, onde as certezas do passado são as dúvidas do presente e o futuro é algo cada vez mais incerto. Pregar a fé, a tolerância e o amor ao próximo num mundo de fake news e confrontos diários é o maior dos desafios. Um político que quer agradar todo mundo, acaba na ruína sem agradar ninguém. Bergoglio daria um grande exemplo se ousasse mais e agradasse menos. Amém.

Poder360














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