por Fernando Fabrini.
O grupo fez coisas divertidas, mas sabemos que a sobrevivência por meio da arte é uma via penosa.
Três coisas que não se discutem, é verdade. Futebol virou uma insanidade coletiva. Comemora-se mais a derrota do adversário do que a vitória do próprio time; sobram pancadarias, depredações e mortes nas guerras das torcidas. Se é política, também não perco tempo batendo boca; cada qual tem sua receita de um país melhor, aposta nela e espera os resultados.
Religião, então, requer ainda mais cuidado. Desde que abriu os olhos na pré-história, o bicho-homem tenta enxergar um sentido para o viver. Encaramos diariamente o incômodo mistério de vir a este mundo sem pedir e ir embora dele sem saber quando, onde e, às vezes, nem por quê. Por isso a pessoa se abriga no seu divino, por mais bizarro que seja, onde encontra explicações e esperanças diante do sofrimento, das incertezas da vida e da certeza da morte.
Acho que a aceitação de que cada um tenha seu caminho espiritual particular ajuda-nos a expandir nossa porção generosa e solidária. Seja na dança dos índios numa aldeia amazônica; nas mãos postas numa capela cristã; no batuque do terreiro de umbanda; nos cânticos do coral gospel; no silêncio do “zazen”, cada homem busca a conexão com seu deus. É seu direito, e ninguém tem nada com isso.
Assim, respeito todas as crenças e não julgo nenhuma. Parto da minha própria fé, que, assim como a de tantos, não se insere num dogma; é resultado das experiências boas e ruins pelas quais passamos e das conclusões que delas extraímos. Disso fazemos uma salada de frutas doces e amargas para ir vivendo, seguindo a alma e o coração.
No entanto, desconfio que esses dois elementos fundamentais – alma e coração – andem faltando a alguns indivíduos. São aqueles adeptos das quebradeiras de imagens de santos; invasões de terreiros de umbanda; violações de cemitérios, locais sagrados e símbolos desta ou daquela religião, ofensas intoleráveis que revelam as mais nauseantes facetas do ser humano.
Em 2015 o jornal “Charlie Hebdo” foi atacado por islâmicos ofendidos pelas piadas ali publicadas.
Na época, certo ator que posa de guru para a meninada comentou assim o episódio: “Sou totalmente a favor dos humoristas do ‘Charlie’”. Poderia ter parado nesse ponto, mas concebeu a seguir a barbaridade “não sou obrigado a respeitar ‘o sagrado de uma pessoa’”.
Opa! Como não? Pimenta naquele negócio dos outros é refresco? Seria oportuno perguntar ao iconoclasta exibicionista como reagiria caso seus “sagrados pessoais” (Pais? Filhos? Namoradas?) fossem desrespeitados por um safado qualquer.
O mesmo rapaz participa agora de uma produção da TV que debocha de passagens da vida de Cristo. Com razão, o filme vem sendo alvo de protestos das comunidades cristãs e de manifestações nas redes.
Fui checar. Criativamente falando, é rasteiro. O grupo fez coisas divertidas, mas sabemos que a sobrevivência por meio da arte é uma via penosa. Nas fases de baixa ou no declínio, na falta de algo melhor, artistas costumam apelar para temas polêmicos, formatados ao marketing especializado em “chocar”. Tem muito disso por aí.
É fácil perceber no filme a intenção sensacionalista e mau-caráter dos acólitos dessa estranha seita. Ela afronta as características de um grupo, tal e qual fazem racistas, agressores de mulheres, fundamentalistas, homofóbicos e outros radicais. Na verdade, a produção é mais uma agressiva e indisfarçável forma de preconceito – no caso, contra os cristãos e sua fé.
Como se não bastasse, é vergonhosamente contraditória, já que vinda de artistas – aqueles caras tão atuantes quando combatem preconceitos. Ah, sim: mas só se indignam com os preconceitos quando tais preconceitos lhes convêm, não é mesmo?
• Publicado originalmente em O Tempo
extraídadepuggina.org
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