Jornalista Andrade Junior

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

MEU ENCONTRO COM EÇA

por Francisco Ferraz

Sobre a nudez forte da verdade,
o manto diáfano da fantasia”
Ler Eça de Queiroz é sempre uma temeridade. Há pessoas que depois de conhecê-lo tomam-no como um companheiro para o resto da vida. Confesso que eu sou uma dessas pessoas.
É difícil ler Eça e não continuar lendo de quando em quando, ao longo da vida, a sua obra.
Difícil não lamentar que sua obra tenha sido tão pequena, sobretudo sua obra de ficção.
Difícil não lamentar que não esteja escrevendo hoje, tendo como cenário Portugal, o Brasil, a Europa... Que falta nos faz Eça para desenhar, em rápidas e fulminantes pinceladas, a tragicomédia política dos nossos dias. Que lástima que não conheceu seu patrício Fernando Pessoa.
Ler Eça na adolescência, como ocorreu comigo, é uma temeridade porque passamos a olhar o mundo e as pessoas com o espírito crítico que se adquire nas obras dele.
Não se trata de um espírito crítico assentado em uma ideologia - raivoso, sério e unilateral. Longe disso, trata-se de um espírito crítico estético e ético e, para dizer a verdade, mais estético que ético. Eça nos ensina a identificar e conhecer as fraquezas humanas habitualmente tão escondidas que ele tão ostensiva e comicamente revela no ridículo dos seus personagens.
Vaidade, falta de escrúpulos, oportunismo, covardia, traição, superstição travestida de religião, mediocridade satisfeita, nulidades preservadas e até promovidas, pusilanimidade, dissimulação são talvez os principais sentimentos que “baixam” em variados personagens do painel pintado por Eça em sua obra.
São sentimentos como esses que na sua pena implacável vão servir para descrever a sociedade portuguesa (sobretudo lisboeta) da sua época (“Lisboa é Paris traduzida em calão”) e para construir as tramas de suas histórias.
Para quem leu Eça precocemente, quanto mais pomposo, mais aparatoso, mais vaidoso, mais enfatuado fosse o indivíduo, maior seria a farsa mentirosa da sua pessoa, cuja realidade tenta cobrir pelo “manto diáfano da fantasia”.
Eu tenho o hábito de dizer que, quem leu Eça na juventude é irrecuperável e incorrigível. Levará pela vida um senso crítico impiedoso; nunca se permitirá ser levado muito a sério; et pour cause será um solitário, um deplacé em meio à multidão de indivíduos politicamente corretos, felizes por pertencerem à manada.
*Ex-reitor da UFRGS













extraídadepuggina.org

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