Ubiratan Jorge Iorio
Entre os economistas liberais e conservadores é muito conhecida a afirmação de Hayek de que não se perde a liberdade em uma só tacada, mas aos poucos, como acontece quando cortamos sucessivamente as fatias de um salame: quatro rodelas hoje, mais seis amanhã, depois de dois ou três dias mais cinco, após algum tempo mais sete, e assim por diante, até que a peça desaparece. É indisfarçável que está acontecendo no Brasil exatamente o que acabei de descrever: estamos perdendo progressivamente as nossas liberdades individuais e é preocupante que muitas pessoas ainda não estejam se dando conta do fato óbvio de que o salame está ficando cada vez mais curto. Quando perceberem, já não existirá mais e não vai adiantar “queixar-se com o bispo”, especialmente se Sua Eminência for adepta da partilha compulsória que prega pela “teologia da libertação”.
Há várias maneiras de restringir as liberdades individuais. A agressão pode ser desferida tanto por agentes privados que, quando adquirem força, dela se revestem e a impõem por meios ilegais, como também pelo Estado, ao fazer uso do monopólio legal da força de que desfruta. Um caso de supressão de liberdade imposta por agentes privados é o do Rio de Janeiro, onde, como em muitas outras cidades brasileiras, os cidadãos não se sentem livres, por exemplo, para caminhar despreocupadamente portando um celular ou qualquer coisa de valor, mesmo em ruas movimentadas ou dentro do próprio carro. Outro exemplo de restrição da liberdade não oriunda do Estado é a infligida pelas patrulhas politicamente corretas, que constrangem quaisquer críticas a atitudes de pessoas pertencentes às ditas minorias, mesmo quando os comentários nada têm a ver com as características específicas que definem essas minorias: se você criticar, suponhamos, por improbidade administrativa, uma mulher, um homossexual ou alguém com cor de pele diferente da sua, será instantaneamente tachado de misógino, homofóbico ou racista, não importando o respeito genuíno que tenha pelas pessoas desses grupos e muito menos se o criticado é ou não realmente corrupto.
Manifestam esses e outros exemplos várias restrições à liberdade desferidas, no primeiro caso, por bandidos contra cidadãos que, em sua maioria, são respeitadores da lei e, no segundo, por grupos específicos de militantes que, muitas vezes, hipocritamente, fazem vista grossa para membros de alguma minoria que cometem crimes, desde que comunguem de sua ideologia.
Mas o objetivo deste artigo é alertar para certas restrições à liberdade impostas pelo Estado, por meio do monopólio da força que legalmente lhe compete. Para isso, é conveniente uma ligeira elaboração. Os liberais, diferentemente dos anarquistas, aceitam a existência e a necessidade de um ente — o Estado — que, legitimado pelos cidadãos e a serviço destes, harmonize a vida em sociedade, exercendo seu poder coercitivo, mas sempre de modo a garantir os direitos fundamentais dos indivíduos à vida, à liberdade e à propriedade. Portanto, o Estado só se justifica quando serve aos cidadãos.
Por sua vez, para um liberal, liberdade é sinônimo de ausência de coerção ou constrangimento imposto por outrem. Este é o conceito de liberdade negativa, ou liberdade de. Ao afirmar que alguém é livre, um liberal entende como tal que ele pode escolher seus próprios objetivos, bem como os meios a serem utilizados para a concretização desses objetivos, que ele não é compelido a agir de uma forma que não escolheria voluntariamente, ou, ainda, que ele não é impedido de agir, por imposição de outrem — seja por parte de outro indivíduo, de um grupo de indivíduos, seja por parte do Estado —, do modo que preferiria. Liberdade, assim entendida como ausência de coerção ou de constrangimento imposto por terceiros, significa o estabelecimento de um campo de atuação dentro do qual o indivíduo — o sujeito da liberdade — pode decidir sobre seus objetivos e sobre os meios de ação que deseja empreender. Evidentemente, a delimitação de sua área de atuação deve ser realizada por um conjunto de normas gerais de justa conduta, isto é, leis, cujo objetivo maior deve ser o de servir como salvaguarda da própria liberdade. John Locke, há mais de 300 anos, já advertia que não pode haver liberdade onde não existe lei. Acrescento, contudo, que pode haver “lei” onde não existe liberdade, uma vez que o justo e o legal às vezes não coexistem.
Em contraposição à ideia de liberdade negativa existe a concepção positiva de liberdade (liberdade para), a qual define que ser alguém livre é o mesmo que ter ou receber poderes ou direitos para executar ações com vistas à concretização de fins especificamente determinados por uma entidade superior, à qual os indivíduos se subordinariam (por ignorância, cegueira ou más intenções, segundo os defensores da liberdade positiva). Sob essa concepção, a liberdade poderia ser alçada ao nível superpessoal — uma comunidade, uma nação, uma classe, o Estado ou a própria marcha da história, a cujos desígnios próprios, ascendência ético-normativa e a cujo pretenso determinismo materialista as consciências individuais deveriam sempre subordinar-se candidamente, como carneiros sendo cercados aos poucos.
Em outras palavras, o conceito positivo de liberdade nada mais é do que uma simples manipulação das definições de homem e de liberdade, com o objetivo de servir aos interesses — na maioria das vezes escusos e simples instrumentos da vontade de poder — do manipulador ou do grupo manipulador da verdadeira liberdade dos indivíduos.
É exatamente esse conceito distorcido de liberdade positiva que vem sendo utilizado para tolher as liberdades autênticas dos brasileiros. Entre dezenas de exemplos recentes — quase todos, infelizmente, emanados do Judiciário, que vem agindo flagrantemente por razões indisfarçadamente políticas e ideológicas —, cito, a título de ilustração, apenas dois, ressaltando que ambos representam muito bem a visão de mundo distorcida que trata os cidadãos, por princípio e sempre, como suspeitos e o Estado como uma entidade absolutamente virtuosa e preocupada com o bem de todos.
O primeiro é a decisão do STF, por margem mínima (6 x 5), que aboliu o sigilo bancário, ao definir como constitucional o disposto em um convênio do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), que obriga as instituições financeiras a fornecer aos fiscos estaduais informações sobre transações realizadas pelos clientes por meio de Pix e cartões de débito e crédito. Os objetivos alegados são o de fiscalizar o ICMS por meios eletrônicos e o de dar maior transparência ao sistema financeiro, facilitando o combate à corrupção e à sonegação. A consequência é que as informações financeiras de todos serão expostas publicamente, embora a Corte tenha declarado que o acesso às informações será restrito às autoridades competentes e apenas em casos específicos, supostamente garantindo um nebuloso “equilíbrio” entre privacidade e transparência.
Além de proibir os 22 milhões de usuários de fazerem uso do recurso do VPN, o referido ministro estipulou, de modo atrabiliário, uma multa completamente desproporcional de R$ 50 mil por dia para os que se atrevessem a fazê-lo
Ora, toda e qualquer intervenção do Estado na vida dos cidadãos significa, em linguagem direta, menos liberdade. Nada justifica a quebra generalizada do sigilo bancário das pessoas, previsto no artigo 5º, inciso XII, da Constituição de 1988, que determina a inviolabilidade do “sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas”, exceto por ordem judicial e para fins de investigação criminal. A decisão implicará aumento inevitável da burocracia e da fiscalização, com todos os conhecidos problemas decorrentes. Simplesmente, por uma deliberação tomada em um colegiado formado por 11 pessoas (que, por sinal, não receberam votos da população), todas as movimentações financeiras dos clientes bancários poderão ser acessadas por autoridades da maneira que melhor entenderem — e sem se poder garantir que será sempre legitimamente e por justiça —, sem necessidade de autorização prévia por parte de magistrados.
O segundo exemplo vem ocupando boa parte das manchetes e das discussões desde o final de agosto. É a decisão monocrática de um ministro do STF que tornou a rede X inacessível no Brasil, por suposta desobediência a ordens judiciais e pela recusa, por parte de seu proprietário, em manter um responsável no país. E, além de proibir os 22 milhões de usuários de fazerem uso do recurso do VPN, o referido ministro estipulou, de modo atrabiliário, uma multa completamente desproporcional de R$ 50 mil por dia para os que se atrevessem a fazê-lo.
Não é preciso, para o fim a que se propõe este artigo, entrar na discussão sobre se as ordens do ministro, referendadas depois por uma Turma, seriam inconstitucionais, ou se o dono da rede X errou em não acatá-las, uma vez que, a esta altura dos acontecimentos, todas as pessoas bem informadas já têm opinião formada e firmada. Nem, muito menos, é necessário comentar — por ridículos — os argumentos de que a referida rede era tóxica, ou de que em nome da liberdade de expressão disseminava mentiras, desinformava, exalava ódio, caluniava, “atacava” instituições e ameaçava o Estado Democrático de Direito, que é o pleonasmo queridinho dos ativistas judiciais, já que o Estado de Direito, por definição, é sempre democrático.
O que é necessário ressaltar aqui, simplesmente, é o fato — gravíssimo — de que 22 milhões de residentes no país que usam aquela rede para se informar e para manifestar suas opiniões estão — até o momento e sabe-se lá até quando — impedidos de fazê-lo. Quantos, dentre esses usuários, usavam a rede para mentir, desinformar, espalhar ódio, caluniar ou atacar de fato as instituições? Um por cento? Três, oito, dez por cento no máximo? Por que então, simplesmente, não utilizar o remédio prescrito em todos esses casos pela Constituição Federal, que faculta a quem sentir-se lesado ou ofendido recorrer à Justiça de primeira instância? É justo punir todos os usuários por supostos crimes cometidos por alguns poucos? Isso não é a própria antítese da justiça, em que milhões de justos pagam por meia dúzia de pecadores? E — cúmulo dos cúmulos — será que é moralmente defensável, além de proibir um número de pessoas superior à população de muitos países não apenas de postar suas opiniões, mas, inacreditavelmente, vedá-las de ler as de outras pessoas? Essas práticas são condizentes com a democracia verdadeira, ou seja, não “relativa”, ou caracterizam uma ditadura?
Voltando aos conceitos de liberdade a que me referi, é fácil perceber a progressiva diminuição da liberdade negativa (liberdade de) em nosso país e também não é difícil deduzir que, quando essa forma de liberdade diminui — isto é, quando aumenta a coerção —, os indivíduos ficam inapelavelmente submetidos à vontade de terceiros e de suas ações arbitrárias, que nos coagem a agir ou não agir de determinada forma, estabelecida por eles. É muito triste escrever isto, mas, da mesma maneira que o diretor de uma peça musical diz a uma cantora que pode escolher o que vai cantar à vontade, desde que só cante músicas de uma lista selecionada por ele, neste Brasil enlouquecido de hoje parece que somos inteiramente livres para manifestar a nossa opinião, desde que seja a mesma dos que se acham donos do país. Caso contrário, eles vão cinicamente nos rotular de “antidemocráticos”.
Nossas possibilidades de escolha estão sendo tiradas em fatias dia após dia, e as que ainda restam são cada vez mais escassas. Por isso, caro leitor, é nosso dever lutar por nossa liberdade — a verdadeira — enquanto ainda podemos fazer isso.
PULBICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/liberdade-fatiada/
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