Ubiratan Jorge Iorio
m meu tempo de colégio ainda era possível jogar bola nas ruas, então pacatas, do meu bairro no Rio de Janeiro. Essa prática, no entanto, era proibida e por isso lembro-me das várias vezes em que eu e meus companheiros de pelada éramos surpreendidos pelo surgimento, lá no início da rua, do temível carro preto da “rádio patrulha”. Imediatamente, era um Deus nos acuda, em que a primeira providência consistia em gritar “depressa, esconde a bola!” e então sumir rapidamente com a dita-cuja, jogando-a em alguma casa, antes que os policiais chegassem e cometessem o “crime”, hediondo aos nossos olhos, de apreendê-la. Depois, era só fazer cara de desentendido, cumprimentar os homens da lei e, assim que desapareciam de vista, reiniciar a partida com uma “bola ao chão” — que nossos pais e avôs ainda chamavam de free kick.
Essa lembrança feliz surgiu a propósito da mais recente tentativa — infeliz — anunciada pelo desgoverno do Brasil, bem parecida com a de esconder a bola, porém sem a inocência daqueles anos. É que, de acordo com a velha imprensa, para driblar a visível insatisfação do povo com a economia, o Executivo, assim que descer a cortina do segundo turno das eleições municipais, vai ampliar a verba de publicidade, com foco na classe média.
Tal notícia causa indignação, por vários motivos. Primeiro, é do conhecimento geral que o atual governo, já em seu primeiro ano, gastou quase 30 vezes mais do que o anterior com publicidade em jornais revistas, sendo que os gastos deram um salto de R$ 117 mil em 2022, para R$ 3,2 milhões em 2023; segundo, porque no mundo de hoje a população não é trouxa e sabe muito bem que a propaganda oficial será mentirosa, assim como os policiais da “rádio patrulha” sabiam que havia uma bola escondida, mas simplesmente fingiam acreditar que não estávamos disputando um “racha” decisivo, mas, talvez, conversando sobre a última aula de física ou, quem sabe, sobre a de geometria analítica do dia seguinte; e a terceira causa de indignação é, simplesmente, a maneira despudorada com que os recursos ditos públicos vêm sendo malversados na incrível república democrática “relativa” em que vivemos.
A verdade visível, horrível e inflexível é que, apesar das mentiras oficiais amplificadas com subserviência pela parte da imprensa comprada com dinheiro público, a economia está bem longe da rota de crescimento sustentado. No máximo — e com muito boa vontade — está ensaiando um voo grotesco e ridículo de frango. Em respeito à boa teoria econômica, é preciso afirmar categoricamente que a economia brasileira está em rota de colisão e que a partir de janeiro de 2025, com a troca de comando no Banco Central, a expectativa do choque será cada vez mais iminente.
Recentemente, um amigo — adorador da seita econômica seguida pelo desgoverno — tentou me contrapor mencionando que a agência de classificação de risco Moody’s tinha acabado de elevar a nota de crédito do Brasil de Ba2 para Ba1, com perspectiva positiva, o que significaria que o país estaria a um passo do chamado grau de investimento, como se tivesse recebido um selo de bom comportamento e sinalizasse agora aos investidores uma queda no risco de calotes. Segundo a agência, a elevação da nota decorre de “melhora significativa no crédito do país, incluindo um crescimento mais robusto do produto interno bruto e um histórico crescente de reformas econômicas e fiscais”.
O que dizer desse upgrade tão festejado pelos governistas? Veio cedo demais, segundo os esperançosos? Ou tarde demais, como afirmam os admiradores mais fanáticos? Sempre respeitando a teoria econômica verdadeira — a que se fundamenta na explicação sistemática de fatos concretos e não dá bola para narrativas ideológicas —, é evidente que a elevação da nota do Brasil não veio cedo nem tarde: simplesmente, não deveria ter vindo, é inteiramente descabida.
As agências de risco costumam analisar coisas básicas: se o crescimento econômico do país é sólido, se a situação da dívida pública é boa, se há esforço para o controle das contas do governo, se a inflação está controlada, se a política monetária está no rumo certo, se há avanços no terreno das reformas, se as instituições funcionam e se há estabilidade jurídica.
Ora, se o PIB vem tendo desempenho satisfatório, isso se deve, primeiro, ao impulso positivo de reformas realizadas nos governos anteriores (como a trabalhista, no período de Temer, e a lei da liberdade econômica, no de Bolsonaro) e, segundo, ao aumento vertiginoso dos gastos do governo, cujos efeitos se assemelham aos de anabolizantes; a dívida pública como porcentual do PIB, por sua vez, está em alta e com expectativa de que vai subir mais; a inflação está relativamente controlada e a política monetária está adequada, mas nada garante que ambas vão continuar assim a partir do próximo mês de janeiro, quando um economista alinhado ideologicamente com o governo assumirá o comando do Banco Central; no terreno das reformas estruturais, além de nada, rigorosamente, ter sido feito desde o início de 2023, ainda houve tentativas de promover retrocessos, como a de cancelar o marco do saneamento e reverter a reforma trabalhista e algumas privatizações; e há, ainda, um furor patológico do governo para tributar — para recorrer a uma conhecida linguagem tosca, “como nunca antes na história desse país”.
Existe, adicionalmente, uma insegurança jurídica gigantesca, motivada pelas constantes ingerências políticas do Poder Judiciário, um fator que simplesmente costuma ser um obstáculo intransponível para a realização de investimentos. Ora, nessas condições, infelizmente, não existe nenhum “perigo” de a nossa economia dar certo. Vamos tentar dizer isso de outro jeito? O crescimento sustentado nada mais é do que um processo permanente de realização de novos investimentos, que ampliam a capacidade de oferta; a má política econômica do governo, o excesso de impostos, a burocracia e a insegurança jurídica impedem que o setor privado faça a sua parte nesse processo; logo, não há crescimento. O governo, então, apela para os “investimentos” públicos; mas não há recursos para isso, até porque 96% das despesas primárias da União estarão comprometidas com gastos obrigatórios em 2025; portanto, também não há crescimento induzido pelo setor público; no máximo, há uma inchação.
A rigor, o que vem impedindo a colisão na rota suicida que o governo está impondo à economia é a atuação solitária do Banco Central, que, todavia, tem sido criticada insistentemente pelo presidente do país e por seu partido, com apoio na velha cantilena politiqueira de que é dever da autoridade monetária manter a taxa de juros baixa para “estimular” a economia e que a inflação não é um problema. Acontece que a partir de janeiro de 2025 a presidência do banco será exercida por um economista alinhado ideologicamente com o governo e simpatizante da teoria monetária moderna, uma coleção de propostas com a cara artificialmente jovem de quem fez aplicação de botox, mas que é velhíssima na essência e nos fracassos, a qual, abreviando, estimula praticamente tudo o que a boa teoria critica e a evidência desaconselha: emissão de moeda, gastos do governo, tributação e endividamento público. Sabatinado pela Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, cujos membros, como se sabe, não primam pela solidez de conhecimentos econômicos, esse economista (que por sinal se expressa verbalmente muito bem) declarou que recebeu o apoio do presidente da República e dos senadores com quem tinha conversado para liderar uma gestão independente e direcionada “exclusivamente ao povo brasileiro”. Foi aprovado por unanimidade. Nossos bondosos senadores têm o costume de aprovar tudo e todos.
Preciso confessar que, mesmo sendo um estudioso da Escola Austríaca, formado nos moldes da tradição da Universidade de Chicago, autor de vários livros e professor de Economia Monetária durante muitos anos, não sei bem o que significa um “banco central voltado exclusivamente para o povo”, uma afirmativa que, sinceramente, desperta preocupação e que soa como bastante populista, porque, no meu entender, a única preocupação de uma autoridade monetária deve ser com a estabilidade da moeda, já que fazendo isso — e não mais do que isso — já estará servindo muito bem aos cidadãos. No entanto, minha inquietação foi ainda maior quando o economista explicou o que entende por gestão independente do Banco Central: ter liberdade operacional para perseguir “metas e objetivos estabelecidos pelo poder democraticamente eleito”. Segundo ele, esses seriam os “cânones” de um banco central independente.
Isso é equivalente a tentar “esconder a bola”. Está errado e distorce o conceito de autonomia do banco, que pressupõe que a meta de inflação e a política monetária compatível devem ser determinadas autonomamente, ou seja, pela própria autoridade monetária.
Fará sentido chamar de autônoma ou independente uma gestão do Banco Central em que o tal “poder democraticamente eleito” (ou seja, o presidente do país) decida, por exemplo, que a inflação deve ficar no intervalo entre 20% e 30% ao ano, ou que a taxa Selic deve permanecer em 0,002% durante todo o seu mandato, não importando as consequências dessas decisões arbitrárias? Isso seria “servir ao povo”? Ora, a ideia de banco central independente surgiu exatamente como uma tentativa de separar os assuntos da moeda e da política monetária da influência dos políticos, ou, como disse Hayek, para tirar o pires de leite do alcance dos gatos. Por isso, não há como não nos preocuparmos com o conceito extremamente peculiar de autonomia do Banco Central do seu futuro presidente. Tudo isso, como já escrevemos linhas atrás, implica que o sinal vermelho na rota de colisão deverá ser antecipado. É óbvio que a polícia logo vai “achar a bola” e acabar com a diversão.
Mas não é somente isso. Não basta, como os economistas “tucanos” da Faria Lima, olhar apenas para os dados fiscais e monetários e alertar para os perigos da dominância fiscal que se avizinha. É preciso advertir para a tremenda insegurança jurídica, a paralisação das privatizações, os obstáculos crescentes ao empreendedorismo, a burocracia e a extorsão tributária. Em suma, há muitos elementos que obrigam os bons economistas — aqueles que se preocupam não só com o que se vê, mas também com o que se deve prever — a olhar para o futuro com descrédito.
O desempenho das estatais, seguramente, faz parte dessa lista. É impressionante a sanha com que os gafanhotos vermelhos se lançam contra as empresas estatais e é desnecessário explicar por que isso representa um mal para o país. De acordo com o Banco Central, entre 2013 e 2016, quando o PT era governo, o prejuízo médio dessas empresas foi de R$ 2,6 bilhões por ano; em 2017 e 2018, no governo Temer, o prejuízo passou a ser lucro, cuja média anual foi de R$ 3,4 bilhões; entre 2019 e 2022, na gestão de Bolsonaro, a média dos lucros subiu para R$ 6,1 bilhões; e, em menos de dois anos do governo atual, o lucro voltou a ser prejuízo, que na média já está na casa de R$ 4,8 bilhões (R$ 2,3 bilhões em 2023 e R$ 7,2 bilhões até o momento em 2024, o maior buraco dos últimos 22 anos).
Não dá mais para tentar “esconder a bola”, por mais que o governo venha a gastar o dinheiro que nos toma de maneira desavergonhada com propaganda para nos iludir. É simplesmente impossível uma soma de tantos erros ter como resultado qualquer coisa parecida com acerto. Não é à toa que muitos brasileiros estão deixando ou pensando em deixar o país e que os investimentos externos estão passando batidos, sem entrar nem mesmo para um cafezinho.
*Artigo publicado originalmente na Revista Oeste.
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/politica/nao-adianta-esconder-a-bola/
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