Paulo Polzonoff Jr.:
No fim de semana revi “Jerry Maguire” e no comecinho do filme o personagem-título, interpretado por Tom Cruise, percebe que sua profissão como agente de esportes se tornou um trabalho desumanizado e desumanizante. Ele tem uma crise, seguida por uma euforia que o leva a escrever um longo memorando intitulado “As coisas que pensamos, mas não dizemos”. Ele acaba demitido por isso. Motivado pelo final feliz do filme, contudo, pensei: “e se eu escrevesse um memorando desses falando do jornalismo?”.
Fico ali entretendo a ideia e, ao ver minha cara de traquinagem e me conhecendo de outros carnavais, minha mulher vai logo apontando o dedo acusador (nossa, que unha bem feita essa apontada para o meu olho, Dani!). “Nem ouse!”, diz ela, enfática. É, “enfática” é um bom eufemismo. Tolo que sou, porém, tento argumentar que, na vida real, o jornalismo querido do meu coração anda tão desumanizado e desumanizante quanto o mundinho do esporte no filme. “E alguém precisa falar alguma coisa. Como no caso do ‘suposto’”, tento. E, como ela não sabe do que estou falando, tenho que explicar.
Semana passada, a concorrência noticiou que Israel tinha convidado jornalistas para assistirem a imagens do suposto ataque do Hamas. (Olha o suposto aí, gente! Chora cavaco!). E agora a mesma concorrência usou o extraprudente (ou seria extracovarde?) suposto para noticiar que, no suposto Irã, uma suposta menina de supostos 17 anos, supostamente chamada Armita Geravand, supostamente morreu depois de ter sido supostamente espancada por supostos guardas da suposta moralidade por supostamente se recusar a usar o suposto véu.
Para que tanto cuidado sabendo que esse excesso de zelo ideologicamente orientado só atrairá a ira do leitor? Por que tanto receio em noticiar a maldade que se pratica em nome da política e fé? As explicações são várias e nenhuma é boa. Há quem acredite que os jornalistas, apesar de todo o apregoado progressismo, têm uma quedinha pelo regime de força da teocracia iraniana e pela já citada violência revolucionária do Hamas. Vai entender! Outros, entre os quais me incluo, acreditam que o “suposto” é um cacoete que se usa para não ter de encarar a própria hipocrisia. Afinal, como justificar a defesa de supostos oprimidos quando eles também são opressores? E ainda por cima das minorias que os progressistas dizem defender? Hein?! Hein?!
Supostamente calma
Mas não é só isso e é aqui que está a encruzilhada do jornalismo contemporâneo. Mas antes tenho que perguntar para minha mulher se posso continuar. Posso? Ela dá de ombros e diz: “Agora que já começou...” O que entendo como uma suposta permissão. Tão suposta, aliás, que me vejo na obrigação de explicar que meu objetivo aqui não é ofender ninguém porque, apesar das profundas e às vezes intransponíveis diferenças, acredito que todos estamos tentando fazer nosso melhor e... “Tá, tá, tá. Continua logo de uma vez!”, diz ela. Supostamente calma.
O pesadelo do jornalismo
Me parece que o uso intencional do “suposto” para se referir a esses dois fatos tem a ver com um indisfarçável ar de superioridade que ainda paira, ô, se paira!, nas redações por aí. Aquela coisa de ter ou achar que tem ou querer ter o controle da narrativa. De querer transformar o mundo e submetê-lo à sua (no caso, nossa) vontade. É como se meus colegas dissessem que o mundo é assim, mesmo sendo assado. E que a você, leitor, ouvinte ou espectador, cabe aceitar: o mundo é assim, mesmo que você o perceba como assado.
Como tudo pode sempre piorar ainda mais, porém, eis-me aqui abrindo um parágrafo para dizer que essa noção autoindulgente (ou narcisista) de superioridade intelectual pode levar o jornalismo a buscar o confronto com o leitor. Não no sentido de provocar a reflexão, e sim no de insultar, humilhar – ou, no contexto, usar o infame “suposto” para mostrar que o jornalismo “não tá nem aí” para o seu público consumidor. Para você.
Essa postura belicista nasce, no fundo, e às vezes nem tão no fundo assim, da insegurança. De uma hesitação intelectual que é antes moral que é antes espiritual. É por meio do insulto que o jornalismo se defende da incrível possibilidade de, apesar dos diplomas, da experiência e da observação cínica do mundo, o homem comum, semiletrado e que nunca leu um livro de Foucault na vida, estar com a razão. Ouso dizer que esse é o maior pesadelo do jornalismo atual.
Resta ainda uma última possibilidade apavorante: a de que o jornalismo, até por necessidade de sobrevivência, possa estar simplesmente repetindo o bordão do personagem de Cuba Gooding Jr. em “Jerry Maguire”: show me the money! De que, na busca desumanizante por assinantes, o jornalismo esteja apelando a um estilo extremo para leitores extremos, dando ao seu público consumidor, cada vez mais intolerante às zonas cinzentas da realidade, justamente o que ele quer. E no caso do suposto ataque do Hamas ou do suposto assassinato de Armita Geravand, o que esse público quer é a impressão de, apesar de toda a hipocrisia, estar do lado certo da história.
P.S.
No final de “Jerry Maguire”, fica claro que, ao escrever o memorando, ele não conseguiu mudar a empresa na qual trabalhava e muito menos o mundo corrupto do agenciamento esportivo. Mas mudou a si mesmo e, um tanto quanto idealizadamente, como convém à fantasia do cinema, conseguiu mudar para melhor a vida das pessoas que o cercavam. Não é pouca coisa.
Paulo Polzonoff Jr., Gazeta do Povo
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