por Jeffrey A. Tucker
Se algum dia baixarmos a guarda de novo, podemos perder tudo o que conquistamos
Foi tudo uma ilusão? Uma ilusão que durou 40 anos?
Claro que não, mas algo deu muito errado, talvez no meio do longo caminho do que parecia ser o aumento da liberdade. Quando chegou a hora de retirá-la (e de fato tudo foi retirado!), os bastiões sociais, intelectuais e culturais que sustentam a liberdade cederam. E perdemos o que amávamos. Por um tempo, o mundo virou trevas.
Todo mundo tem sua linha do tempo historiográfica, mas a minha acompanha o curso da minha vida e carreira. Eu me lembro do grande mal dos anos 1970, a ideia destruída de orgulho nacional depois do desastre da Guerra do Vietnã, os gasodutos, a perda de confiança, a inflação, a austeridade. Mas o que veio na sequência, da década de 1980 em diante (de novo, talvez mais na lenda da minha própria mente do que na realidade), foi um amanhecer nos Estados Unidos e a gradual emancipação do mundo.
Parecia que, finalmente, nada poderia prejudicar a trajetória ascendente. Seu melhor simbolismo foram a queda do Muro de Berlim e o estranho derretimento do Império do Mal no decorrer do que pareceu ser uma questão de meses. Na grande luta entre liberdade e totalitarismo — pelo menos esse foi o encantamento da cultura cívica da época —, os mocinhos tinham vencido.
E então veio 2020. Em questão de semanas, o progresso de décadas foi pisoteado. Praticamente ninguém poderia ter previsto o desencadeador: o medo de um vírus, somado a uma reação intelectualmente estapafúrdia, seguido de três anos pavorosos de mentiras e acobertamentos que continuam até hoje
Sim, a oportunidade para um mundo ainda mais livre e pacífico foi destruída com duas guerras sucessivas no Iraque e outros conflitos regionais em que os Estados Unidos não tiveram razão para entrar. Mas, mesmo assim, pareciam ter sido erros políticos, e não afastamentos fundamentais do esforço rumo à liberdade. O impulso para um mundo melhor continuava em curso.
O Mundo dos Jetsons
O surgimento e a democratização da tecnologia da internet depois de 1995 pareceram reforçar essa tendência. O governo estava saindo do caminho, e a iniciativa privada estava construindo um novo mundo à nossa volta, um mundo que não poderia ser controlado pela classe dominante do Velho Mundo. Nem mesmo os presidentes dos Estados Unidos poderiam arruinar as coisas: vamos pensar nas administrações dos dois Bush, de Clinton e Obama. Olhando para trás, elas pareceram relativamente tranquilas. Reagan deixou sua marca (pelo menos, os ideais), e nada poderia mudar isso.
Eu me lembro de um almoço que tive com um economista cerca de 15 anos atrás. Ele provavelmente era o maior especialista do mundo em desenvolvimento global. Perguntei o que poderia acontecer para desviar o curso da história em sua marcha ascendente, com cada vez mais alimento, saúde e longevidade para o mundo. A curta resposta dele foi: nada. Pelo menos era provável que nada acontecesse. As redes que amparam o comércio e os direitos humanos são fortes demais para ser rompidas nesse estágio tão avançado.
E, nessa mesma linha, escrevi livros sobre nosso Mundo dos Jetsons, a Linda Anarquia à nossa volta, os ajustes e os retoques que poderiam melhorar ainda mais as coisas; mas na maior parte passei aqueles anos incentivando nós todos a apreciarmos mais as evidências das bênçãos da liberdade que estava por toda parte. Acreditei que era o necessário para manter o progresso nos trilhos. Apesar de ter comentado e alertado para as graves ameaças no horizonte, e houve muitos dias sombrios depois da virada do milênio, não havia como saber como eram reais e quanto estavam próximas. O caminho para a luz ainda parecia alcançável.
Demônios e bruxas à solta
E então veio 2020. Em questão de semanas, o progresso de décadas foi pisoteado. Praticamente ninguém poderia ter previsto o desencadeador: o medo de um vírus, somado a uma reação intelectualmente estapafúrdia, seguido de três anos pavorosos de mentiras e acobertamentos que continuam até hoje.
Talvez, refletindo, faça algum sentido. Se você fosse o dono e o operador do Estado de Leviatã na segunda década do século 21 e a perda de controle sobre as pessoas fosse palpável, e você soubesse como apertar as rédeas da ordem social, que desculpa seria possível inventar?
Na Idade Média, devia ser fácil inspirar a obediência das massas por meio de discursos religiosos, como o medo mortal da heresia, e demônios e bruxas à solta. No século 20, o medo mortal dos inimigos estrangeiros, com armas de destruição em massa, e de ideologias loucas e autoritárias fez maravilhas.
Mas no século 21, quando as antigas desculpas se esgarçaram, e quando a nossa fé era no progresso infinito, a melhor tática pode ser postular sobre o surgimento de um patógeno invisível que, se não for contido, corre o risco nos destruir a todos. E, em retrospecto, fica óbvio agora que essa narrativa estava sendo preparada havia anos.
Foi assim que o Estado moderno desencadeou o medo maciço da mais primitiva das forças, uma força em relação à qual o conhecimento das gerações passadas não conseguiu ser transmitido para uma nova geração. Se tivessem realmente entendido a doença infecciosa, as pessoas saberiam que esse tipo de problema não é uma questão tão urgente hoje quanto foi no passado. E teriam rejeitado a febre fabricada e descontrolada, especialmente quando os dados foram disponibilizados. Mesmo assim, deveríamos ter sido capazes de enxergar a farsa.
Big Tech, Big Media e Estado
Nos últimos dois séculos, graças a uma melhoria nos hábitos de higiene, ao aprimoramento das condições sanitárias, à imunidade natural generalizada adquirida por meio da uma integração global cada vez maior, além de água e alimentos melhores e mais limpos, sem contar os antibióticos, as grandes pragas do passado em grande parte desapareceram.
Além do mais, e deixando todas as fantasias hollywoodianas de lado, existe uma dinâmica inerente a qualquer vírus novo que seja autolimitante: aquilo que é mais prevalente é menos severo, e vice-versa. Quanto à vacina, já foi estabelecido que um vírus respiratório de mutação rápida escapa à erradicação e até mesmo ao controle por meio da vacinação, não importa a tecnologia usada.
Então, com um pouco de conhecimento, não teria havido pânico, quanto mais aceitação da súbita imposição de exigências escandalosas de que todos os espaços comerciais onde as pessoas se reuniam deveriam ser fechados. Ademais, com apenas um pouco de compreensão sobre a importância das liberdades e dos direitos básicos para o funcionamento da sociedade e do mercado — e as consequências de atropelá-los para a saúde pública —, o público teria resistido ao fechamento de comércios, igrejas e escolas com toda a força.
E aqui estamos, quase três anos depois, ainda vivendo em meio aos destroços, com a saúde pública destruída, uma geração de crianças traumatizadas, uma população aterrorizada e desmoralizada com associações civis e redes de amizades destruídas, perdas familiares, conflitos internacionais, a perda de um centro moral e uma perda devastadora de fé e confiança nas elites de todas as instituições da sociedade
De alguma forma, isso não aconteceu. Até hoje, continuamos nos perguntando o porquê. Ficamos intrigados com toda pista que revelamos. Fomos recentemente iluminados, por exemplo, com a descoberta do tanto que as plataformas tecnológicas, que acreditávamos nos proporcionar mais liberdade, na verdade foram tomadas por atores do Estado paralelo que tinham toda a ambição de controlar o que dissemos e para quem dissemos.
Também não tínhamos entendido de fato o tamanho do poder político das grandes redes varejistas, a dominação dos principais players na indústria das mídias sociais, o abismo de interesses que se abriu entre o trabalho prático e o trabalho feito de um computador, o conluio endêmico da Big Tech com a Big Media e o Estado, e as ambições do governo administrativo de lembrar a população toda sobre quem está no comando.
As lições da Primeira Guerra Mundial
Mesmo assim, algo mais deu errado que não havíamos notado. A população como um todo tinha começado a menosprezar a liberdade em si e até começado a acreditar que se travava de uma condição opcional da vida. O que aconteceria se abríssemos mão dela por algumas semanas? Qual seria o lado ruim? Até mesmo algo conhecido como “a economia” poderia ser desligado e religado como um interruptor, e não haveria consequências reais, exceto algumas perdas no mercado de ações. Quem se importa? Qualquer coisa para controlar o bichinho ruim à solta.
E aqui estamos, quase três anos depois, ainda vivendo em meio aos destroços, com a saúde pública destruída, uma geração de crianças traumatizadas, uma população aterrorizada e desmoralizada com associações civis e redes de amizades destruídas, perdas familiares, conflitos internacionais, a perda de um centro moral e uma perda devastadora de fé e confiança nas elites de todas as instituições da sociedade.
Não podemos escapar à suspeita de que, ao entrar no período da pandemia, algo fundamental sobre a cultura e a sociedade havia erodido para que isso fosse possível. O que deu errado e como pode ser restaurado? São as questões urgentes do dia.
Historiadores dizem que as gerações passadas fizeram perguntas parecidas quando cercadas por desastres inesperados. A Primeira Guerra Mundial vem à mente. Ela ocorreu depois de 40 anos de progresso crescente. Todo ano, de 1870 até 1910, pareceu revelar melhorias impensáveis para a condição humana: o fim da escravidão, o advento da impressão em massa, a eletricidade, a comercialização do aço e a construção de grandes cidades, iluminação, encanamento interno, telefonia, tecnologia de gravação e muito mais.
As Feiras Mundiais, uma após a outra, destacaram tudo isso, e as multidões ficaram maravilhadas. Tanto que os intelectuais da era vitoriana acreditaram que a humanidade havia descoberto o caminho para o progresso e a iluminação infinita. Com a formação e a escolarização em massa, as instituições que tinham gerado tanto progresso por décadas acreditaram estar suficientemente fortalecidas e, de modo geral, ser invioláveis.
Então, no decorrer de uma série de fiascos discretos entre o corpo diplomático e a crença tola de que alguns exércitos marchando aqui poderiam sustentar a prática do governo democrático, cerca de 15 milhões morreram e outros 23 milhões ficaram feridos. Durante o rescaldo, o mapa da Europa foi arruinado de forma tão terrível que o caminho para outra rodada de matanças nas décadas seguintes foi pavimentado.
Não existe um piloto automático
Seria de imaginar que, a esta altura, teríamos aprendido que não existe fim da história. Pelo menos, estamos torcendo para que não exista, simplesmente porque não deve haver fim para a luta por liberdade: conquistá-la e mantê-la. Isso significa que a disputa pela mentalidade pública numa determinada era é a mais importante se acreditamos que vale a pena construir e proteger a civilização.
Nossa geração aprendeu uma lição valiosa. Nunca tratar a liberdade como algo garantido. Nunca confiar a liberdade a um punhado de especialistas com poder. Nunca acreditar que a humanidade está acima e além do uso de métodos brutais de dominação e controle. Se algum dia baixarmos a guarda de novo, se algum dia acreditarmos que existem verdades tão bem compreendidas que não precisamos ensiná-las para a próxima geração, podemos perder tudo o que conquistamos.
Nada neste mundo funciona como se estivesse no piloto automático. Não existe metanarrativa, não há vento de mudança que opere de maneira independente das escolhas que fazemos. Ideias são os autores da história, que são uma extensão das mentes humanas. Não existe setor da vida que não exija coragem moral e determinação para defender os direitos humanos de todas as invasões.
Este ano sem dúvida estará cheio de revelações, mais escândalos, a revelação de mais erros terríveis, mais manipulações de grupos de interesse da mentalidade pública, e cada vez mais gritos por justiça diante de tudo o que perdemos.
Não podemos esmorecer, sob o risco de que o despotismo que vivenciamos muito recentemente seja repetido e enraizado. Agora sabemos que pode acontecer, e não há nada inevitável sobre o progresso genuíno. Nosso trabalho agora é nos organizar e nos repactuar com uma vida livre, nunca mais acreditando que existem forças mágicas em ação no mundo que tornem desnecessário o nosso trabalho como pensadores e agentes.
Revista Oeste
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