Jornalista Andrade Junior

sábado, 3 de setembro de 2022

'Ciência do pensamento único',

 por Dagomir Marquezi  Um editorial revela o perigo do controle ideológico das pesquisas científicas


Aexploração política da pandemia de covid-19 elevou uma palavra ao altar intocável da razão incontestável: “ciência”. “Tomei essa atitude em nome da ciência”, diziam prefeitos e governadores enquanto trancavam pessoas em casa e mandavam espancar cidadãos sem máscara na rua. Se é “em nome da ciência”, tudo se torna possível. Confundir “ciência” com “verdade” sempre foi e continua sendo uma perigosa arma de manipulação.

A ciência já sobreviveu às piores tiranias e a empresários sem escrúpulos. Agora enfrenta uma inimiga sutil e dissimulada — a correção política. Um recente artigo da prestigiada publicação científica mensal Nature Human Behavior (“Natureza Comportamento Humano”) revelou em detalhes (e com a previsível lista de boas intenções) como essa “consciência woke” opera nas instituições de pesquisa. E também como ela pode prejudicar o próprio conhecimento científico.

A denúncia foi feita por Bo Winegard, da revista australiana Quillette. Winegard entende muito bem do assunto — é ph.D. em psicologia social e sabe como funcionam os bastidores da vida acadêmica. Ele se revoltou com um editorial da Nature Human Behavior (NHB) que começa com uma “regra” altamente discutível: “Embora a liberdade acadêmica seja fundamental, ela não é ilimitada”.

Bo Winegard, ph.D. em psicologia social | Foto: Wickmedia Commons

O editorial é assinado pela editora-chefe da NHB, Stavroula Kousta. Logo no quarto parágrafo do editorial, Kousta escancara sua militância. Ao falar sobre ética nas pesquisas científicas, ela escreve que “as pessoas podem ser prejudicadas indiretamente. Por exemplo, a pesquisa pode — inadvertidamente — estigmatizar indivíduos ou grupos humanos. Pode ser discriminatório, racista, sexista, capacitista ou homofóbico. Pode fornecer justificativa para minar os direitos humanos de grupos específicos, simplesmente por causa de suas características sociais”.

É a mesma lógica usada em empresas bancárias, emissoras de TV e agências de propaganda. O mundo é cruel, especialmente por culpa de homens brancos héteros que prejudicam grupos específicos de pessoas. Segundo esse raciocínio, pessoas “progressistas” devem proteger esses grupos fragilizados com políticas específicas “inclusivas”. A pesquisa científica não poderia escapar dessa onda.

Agenda política

Stavroula Kousta prega que “alguns argumentam que devemos avaliar uma pesquisa apenas com base em sua solidez e seu mérito científico. Discordo”. Isso mesmo — solidez e mérito científico deixam de ser o foco principal dos pesquisadores. Foram rebaixados a coadjuvantes. Devem se integrar agora à nova ordem.

Ao criticar essa declaração de novos princípios da Nature Human Behavior, Bo Winegard nos leva à seguinte hipótese: “Imagine por um momento que este editorial fosse escrito não por progressistas políticos, mas por católicos conservadores, que anunciavam que qualquer pesquisa que promovesse (mesmo ‘inadvertidamente’) sexo promíscuo, o colapso da família nuclear, agnosticismo e ateísmo ou o declínio do Estado-Nação seria suprimida ou rejeitada para não infligir ‘danos’ não especificados a grupos ou indivíduos vagamente definidos. Muitos dos que atualmente concordam com os editores da Nature não teriam dificuldade em identificar a subordinação da ciência a uma agenda política”.

O poeta e escritor Dante-Alighieri durante seu exílio, no século 19. Gravura de ‘Les-grandes infortunas’ por Changer et Spont | Foto: Reprodução

Winegard cita um exemplo teórico: “Suponha que alguém descubra que os homens são mais propensos do que as mulheres a ser representados no final da distribuição de habilidades matemáticas e, portanto, mais propensos a ser engenheiros ou professores de física. Tal descoberta constitui sexismo, mesmo que apenas por implicação? Estigmatiza ou ajuda a estereotipar negativamente as mulheres? Os autores do editorial estão defendendo a ideia de que os periódicos não devem publicar um artigo que contenha esses dados ou faça tal argumento?”. Em outras palavras: o conhecimento gerado pela pesquisa científica deve se submeter à militância dos editores de uma publicação como a Nature Human Behavior? E, por extensão, a todas as publicações científicas tomadas por militantes progressistas?

Prisão ideológica

O editorial escrito por Stavroula Kousta para a NHB aparentemente cede um pouco em sua pregação woke quando diz que “há um sutil equilíbrio entre a liberdade acadêmica e a proteção da dignidade e dos direitos de indivíduos e grupos humanos. Comprometemo-nos a usar esta orientação de forma cautelosa e criteriosa, consultando especialistas em ética e grupos de defesa quando necessário”.

OK, eles se comprometem. Mas o que define uma forma “cautelosa e criteriosa” nesse caso? Pior ainda: quem são esses “especialistas em ética e grupos de defesa” que serão consultados “quando necessário”? Isso acontece na imprensa o tempo todo. O jornalista de esquerda entrevista “especialistas” de esquerda para dar um tom de credibilidade à reportagem de viés esquerdista que ele está escrevendo. O ciclo da ignorância se fecha nessa prisão ideológica.

Foto: Shutterstock

A editora do NHB anuncia no seu editorial que criou um guia de comportamento para cientistas que quiserem escrever para a revista. O guia se baseia em fontes como a Declaração dos Direitos Humanos da ONU e “códigos éticos” de disciplinas como sociologia e antropologia.

Quem for especialista em comportamento humano e quiser escrever para a publicação vai ter de ler e seguir esse guia. A partir dele, serão avaliados os “potenciais benefícios e danos decorrentes de manuscritos que tratam de grupos populacionais humanos categorizados com base em características socialmente construídas ou socialmente relevantes, como raça, etnia, origem nacional ou social, sexo, identidade de gênero, orientação sexual, religião, crenças políticas ou outras, idade, doença, habilidade/inabilidade ou status socioeconômico”.

Promiscuidade sem proteção

E o cientista que não quiser se submeter a esse e outros guias “éticos” semelhantes? A gente já sabe. Não será publicado. Será marcado pela rejeição em qualquer atividade que exija uma aprovação: uma promoção, uma verba, um laboratório. Isso, na melhor das hipóteses. Se reagir publicamente ao código de conduta do bom progressista, as coisas poderão se complicar para o cientista. Ele será tratado como um negacionista, ou direitista, ou fascista, ou qualquer outro palavrão que termine com “ista” ou “fóbico”. Sua carreira estará limitada à periferia da pesquisa científica. Seus trabalhos não terão a divulgação que possam merecer.

Temos visto esse tipo de controle ideológico em todas as esferas de atividade intelectual. Que afete a qualidade de informação de um jornal, por exemplo, é péssimo. Jornais da velha imprensa estão se tornando cada vez mais irrelevantes justamente por se pautarem pela atividade de militantes. Tudo bem, a gente se informa por outros meios. Mas o que pode acontecer quando esse tipo de controle se estabelece na atividade científica — de onde saem as medicações e os procedimentos que podem determinar nossa vida ou nossa morte?

Ilustração: Freepik

Em seu artigo para a Quillette, Bo Winegard imagina uma situação hipotética: digamos que uma pesquisa acadêmica descubra que homens homossexuais sejam mais promíscuos do que os homens heterossexuais. (Lembrando aos patrulheiros: essa é só uma hipótese!) Esse estudo passaria pelo guia da revista Nature Human Behavior e sua editora Stavroula Kousta? Ou seria considerado “prejudicial” a um “grupo humano vulnerável”?

E o cientista que não quiser se submeter a esse e outros guias “éticos” semelhantes? A gente já sabe. Não será publicado

Claro que gente preconceituosa vai usar essa informação científica para reforçar seus estereótipos sobre homossexuais. Preconceito é crime, e essas pessoas teriam de enfrentar a Justiça — simples assim. Mas essa pesquisa poderia também, segundo Bo Winegard, aumentar a consciência sobre “os perigos desproporcionais que ameaçam a saúde sexual do homem homossexual pela promiscuidade sem proteção”. O que, por sua vez, poderia conscientizar esses grupos e levar a uma redução no número de infecções sexualmente transmissíveis. Isso ajudaria a todos indiscriminadamente, homos e héteros.

Os especialistas em ética

Outro exemplo hipotético: um estudo que revele que um número proporcionalmente maior de crimes é cometido por negros será considerado preconceituoso. Por outro lado, um estudo que revele que um número maior de crimes é cometido por homens heterossexuais será recebido com júbilo pelos progressistas da Nature Human Behavior. Fatos científicos não importam mais para eles. Importante é que os fatos se encaixem em suas frágeis narrativas de correção política.

O guia do que pode e o que não pode nas pesquisas científicas segundo a Nature Human Behavior não seria completo se não se colocasse contra o fator binário na sexualidade, o velho masculino & feminino. E lista as possibilidades de múltiplas identidades sexuais, que aparentemente não param de se multiplicar, “incluindo (mas não se limitando a) transgênero, gênero queer, gênero fluido, não binário, variante de gênero, sem gênero, agênero, não gênero, bigênero, homem trans, mulher trans, masculino trans, feminino trans e cisgênero”.

O editorial termina dizendo que, mesmo se as pesquisas forem liberadas por “especialistas em ética”, os editores poderão contestar ou mesmo proibir a publicação de estudos que contenham “suposições potencialmente sexistas, misóginas e/ou anti-LGBTQ+”. Não haverá moleza na revista de Stavroula Kousta para quem não se comportar direitinho.

A academia como mídia partidária

“À medida que o valor ideológico da ciência aumenta, também aumenta a ameaça à sua objetividade”, alerta Bo Winegard no seu artigo para a Quillette. “Slogans e hashtags podem politizar rapidamente a ciência, e os cientistas podem ser tentados a subordinar a busca da verdade a fins morais ou políticos à medida que se conscientizam de sua própria prodigiosa importância social. Dados inconvenientes podem ser suprimidos ou escondidos e pesquisas inconvenientes podem ser anuladas. Isso é especialmente verdadeiro quando uma tribo ou facção política gozam de influência desproporcional na academia — seus membros podem desfigurar a ciência (muitas vezes inconscientemente) para apoiar suas próprias preferências ideológicas. É assim que a ciência se torna mais propaganda do que empirismo, e a academia se torna mais uma organização de mídia partidária do que uma instituição imparcial.”

A politização da ciência não é e nunca foi uma novidade. Como exemplo disso, o artigo de Winegard começa com uma citação do farmacologista inglês Henry Haillett Dale (1875-1968), ganhador do Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina de 1936: “A ciência, devemos insistir, melhor do que qualquer outra disciplina, pode apresentar a seus alunos e seguidores um ideal de devoção paciente à busca da verdade objetiva, com visão não obscurecida por motivos pessoais ou políticos”.


Revista Oeste

















PUBLICADAEMhttp://rota2014.blogspot.com/2022/09/ciencia-do-pensamento-unico-por-dagomir.html

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