Eça de Queiroz
Este artigo do grande escritor portuguĂȘs parece feito sob medida para denunciar poderes de Estado que vivem na opulĂȘncia, abusam da posição que ocupam, se autoconcedem facilidades, preservam injustiças e cultuam a impunidade como regra de ouro da vida polĂtica.
HĂĄ no mundo uma raça de homens com instintos sagrados e luminosos, com divinas bondades do coração, com uma inteligĂȘncia serena e lĂșcida, com dedicaçÔes profundas, cheias de amor pelo trabalho e de adoração pelo bem, que sofrem, e se lamentam em vĂŁo.
Estes homens sĂŁo o Povo.
Estes homens, sob o peso do calor e do sol, transidos pelas chuvas, e pelo frio, descalços, mal nutridos, lavram a terra, revolvem-na, gastam a sua vida, a sua força, para criar o pão, o alimento de todos.
Estes homens sĂŁo o Povo, e sĂŁo os que nos alimentam.
Estes homens vivem nas fĂĄbricas, pĂĄlidos, doentes, sem famĂlia, sem doces noites, sem um olhar amigo que os console, sem ter o repouso do corpo e a expansĂŁo da alma, e fabricam o linho, o pano, a seda, os estofos.
Estes homens sĂŁo o Povo, e sĂŁo os que nos vestem.
Estes homens vivem debaixo das minas, sem o sol e as doçuras consoladoras da Natureza, respirando mal, comendo pouco, sempre na vĂ©spera da morte, rotos, sujos, curvados, e extraem o metal, o minĂ©rio, o cobre, o ferro, e toda a matĂ©ria das indĂșstrias.
Estes homens sĂŁo o Povo, e sĂŁo os que nos enriquecem.
Estes homens, nos tempos de lutas e de crises, tomam as velhas armas da PĂĄtria e vĂŁo, dormindo mal, com marchas terrĂveis, Ă neve, Ă chuva, ao frio, nos calores pesados, combater e morrer longe dos filhos e das mĂŁes, sem ventura, esquecidos, para que nĂłs conservemos o nosso descanso opulento.
Estes homens sĂŁo o Povo, e sĂŁo os que nos defendem.
Estes homens formam as equipagens dos navios, sĂŁo lenhadores, guardadores de gado, servos mal retribuĂdos e desprezados.
Estes homens sĂŁo o Povo, e sĂŁo os que nos servem.
E o mundo oficial, opulento, soberano, o que faz a estes homens que o vestem, que o alimentam, que o enriquecem, que o defendem, que o servem?
Primeiro, despreza-os ao nĂŁo pensar neles, nĂŁo vela por eles; trata-os como se tratam os bois; deixa-lhes apenas uma pequena porção dos seus trabalhos dolorosos; nĂŁo lhes melhora a sorte, cerca-os de obstĂĄculos e de dificuldades; forma-lhes em redor uma servidĂŁo que os prende e uma misĂ©ria que os esmaga; nĂŁo lhes dĂĄ protecção; e, terrĂvel coisa, nĂŁo os instrui: deixa-lhes morrer a alma.
à por isso que os que tem coração e alma, e amam a Justiça, devem lutar e combater pelo Povo.
E ainda que não sejam escutados, tem na amizade dele uma consolação suprema.
* Reproduzido do excelente “Recanto das Letras” - https://www.recantodasletras.com.br/
PUBLICADAEMhttps://www.puggina.org/outros-autores-artigo/o-povo__17609




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