“Sou professora de inglês do Colégio Estadual Visconde de Cairu, no Méier, há quase 24 anos. Na segunda-feira da semana retrasada, dia 16 de dezembro, ao fim do último Conselho de Classe, uma representante da Secretaria da Educação me chamou para me mostrar um documento emitido na sexta-feira anterior, dia 13, reiterando uma tal Portaria 419, de que ninguém tinha ouvido falar. Segundo essa portaria:
“‘No Ensino Médio, no Curso Normal, Ensino Médio Integrado e na Educação Profissional, a língua estrangeira moderna, de matrícula facultativa para o discente, é componente curricular de oferta obrigatória, observado, ainda, a presença da língua espanhola nos termos da lei’. (O grifo é meu, CR)
“Cora, como professora há 26 anos, posso te dizer que, se uma disciplina não tem o ‘poder’ de reter o aluno em sala de aula, ela é automaticamente desprezada pelos alunos, que têm coisas mais importantes com que se preocupar.
“Não estou escrevendo isso porque quero reprovar em massa. Claro que não! Quero entrar em sala de aula e quero que meus alunos me vejam como professora de uma disciplina a ser considerada, e não como ‘perfumaria’ ou ‘inutilidade’ (palavras de alunos).
“O que mais me mata é que, neste ano, ouvi o Eduardo Paes — que nem é meu patrão —, pedir que jovens que falam outros idiomas se voluntariem para auxiliar na Copa (e mais tarde, nas Olimpíadas). Isso, em outras palavras, quer dizer o seguinte: jovens da classe média serão voluntários da Copa, ajudando como intérpretes; jovens de classes economicamente desfavorecidas, que não estudam nos Santos da vida, serão os lixeiros da Copa, os trocadores da Copa, os sei-lá-o-quê da Copa!
“Na semana passada, estava lendo sua coluna, como sempre, quando me deu o estalo: ‘A Cora adora ler, fala outros idiomas... Por que não falar com ela?!’ Uns dias depois, você apareceu numa outra coluna, desejando uma melhor educação no novo ano (além de respeito com os peludos de quatro patas).
“Peço, então, a sua ajuda. Sempre ouvi falar que a Imprensa é o ‘quarto poder’. Considerando que, como professora de escola pública nunca me senti muito ajudada por nenhum dos outros três poderes, seria bom poder contar com os meios de comunicação para, ao menos, iniciar um debate sobre isso.
“Neste ano, a Alab (Associação de Linguística Aplicada do Brasil) discutiu os enunciados das questões de língua estrangeira no Enem; um grupo, defendendo a manutenção dos enunciados em português; o outro, pleiteando enunciados em inglês, acreditando que isso seria importante, como mais um passo rumo à maior valorização e incremento de qualidade no ensino da disciplina. Apesar de ter minha opinião a respeito disso, acho que a resolução dessa portaria é potencialmente muito mais danosa à disciplina. Mandei um e-mail para a associação... e nada! Confesso que estou me sentindo meio sozinha nesta minha indignação.
“O mais engraçado é que, no sábado, dia 21, fui ao colégio dar o resultado final dos alunos, quando eles têm de ir lá para assinar o papel que atesta que estão em dependência numa dada disciplina. Deixei oito alunos em dependência. Cinco, dos oito, foram lá, num sábado cinzento. Vários outros entraram na sala em que estava, para falar comigo, me desejar feliz Natal, fofocar. Muitos comentaram com uma professora de História que também lá estava o quanto eu os obriguei a estudar, com minhas provas-surpresa, meus testes-relâmpago de verbos e minha ranzinzice. Mas o fato é que eles estudaram, e a despeito de eu ser apenas uma professorinha de língua estrangeira, eles aprenderam alguma coisa.
“E o que eu aprendi, com a Portaria 419? Que eu valho ainda menos, como professora do Estado do Rio de Janeiro, do que eu imaginava. Que os grandes administradores da educação pública em nosso estado consideram a minha disciplina ainda menos valiosa do que eu imaginava. E que os políticos acharam mais um meio de maquiar as péssimas estatísticas escolares, quando o pessoal do Banco Mundial der uma olhadinha nos nossos números...
(....)
Gisele Abreu dos Santos”
Gosto muito de dar voz a professores, porque, mais do que índices disso e daquilo e, sobretudo, mais do que quaisquer autoridades, eles é que sabem da educação no país. Trocando em miúdos, o que a carta da Gisele nos informa é que, daqui para a frente, os jovens matriculados em escolas públicas estaduais estarão ainda menos preparados para enfrentar o mercado de trabalho do que já estavam — o que não é dizer pouco. Na prática, aprender inglês (ou espanhol, ou qualquer outra língua) deixa de ser obrigatório para eles, já que língua estrangeira deixou de ser matéria que reprova.
A portaria da Secretaria de Educação — promulgada em setembro, à sorrelfa, quando os professores estavam em greve — é de um cinismo e de uma falta de visão espetaculares. Quem olhar as escolas de fora não notará diferença; e o estado poderá sempre apontar para o currículo e bater no peito metafórico, dizendo que sim, que ensina línguas estrangeiras para as crianças. Mas isso será só uma enganação como tantas outras. Ao deixar de valer nota, a língua estrangeira passará a ser vista pelos alunos como uma bela chance de escapulir da sala de aula. Ninguém precisa de bola de cristal para prever o resultado disso.
Não sei de que cabeças iluminadas saiu a portaria, mas gostaria muito de saber se, para os filhos desses burocratas tão zelosos pelo ensino público, inglês também é matéria irrelevante.
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