Judiciário em Foco
Hoje, a partir de uma visão retrospectiva de sociedades afastadas de nós pelo tempo e pelo espaço, repudiamos e desprezamos os milhares de alemães que, nos anos do terceiro Reich e por determinação de Hitler, providenciavam o transporte de judeus ao holocausto. Da mesma forma como execramos os funcionários da Nomenklatura soviética que, sob a batuta inclemente de Stálin e de seus sucessores no Kremlin, procediam às prisões, aos expurgos e à deportação dos chamados “inimigos do povo” rumo ao temidos gulags. Exercício intrigante, pois passível de nos arrancar do conforto do distanciamento histórico, seria a formulação da seguinte pergunta: de que modo eu e você, caro leitor, teríamos nos comportado na Alemanha hitlerista ou na cortina de ferro, diante de ordens de nossos superiores hierárquicos que implicassem flagelos indiscriminados às vidas, às liberdades e à propriedade de seres tão humanos quanto nós? Questão retórica, para a qual é impossível obter uma resposta precisa – pois nenhum de nós efetivamente experimentou tais situações -, mas capaz de sacudir nossas consciências.
Desde o último final de semana, o empresário estrangeiro Elon Musk, proprietário da rede social X (antigo Twitter), vem proferindo, em sua conta pessoal na plataforma, uma série de acusações sobre a censura instaurada pelo ministro Alexandre de Moraes, membro da nossa cúpula judiciária e atual presidente da corte eleitoral. Iniciou suas falas com uma indagação sobre as razões pelas quais o magistrado estaria praticando tanta censura[1] e, tendo subido o tom em poucas horas, revelou o modus operandi do sistema implementado pelo togado por ele designado como “ditador brutal”, pois, nas palavras de Musk, costumava impor um prazo de “duas horas para suspender uma conta ou enfrentar multas maciças”. Segundo o empresário, “a gota d’água foi quando recebemos ordens para suspender atuais membros do Congresso e grandes jornalistas, e, além disso, não podíamos falar que isso era por ordem de Alexandre de Moraes. Tínhamos que fingir que era devido às nossas regras de serviço. E essa foi a gota d’água, e nós dissemos não[2].” O relato, a ser verídico, descortinou a coação por parte de um agente estatal, que parece ter atirado o empreendedor a um dilema. Ou bem Musk cumpria as tais ordens “heterodoxas”, em prejuízo injustificado a seus usuários (clientes) ou sujeitava sua empresa a multas pesadas e seus funcionários a eventuais detenções.
No sistema onde a única preocupação dos poderosos consiste na construção de blindagens recíprocas e onde investigações sérias para a apuração da verdade real dos fatos tendem a ser jogadas para baixo do tapete, o STF não tardou a emitir uma nota, assinada pelo próprio presidente do colegiado. Ecoando uma narrativa lançada pela grande mídia logo após o estouro do “caso Musk”, o ministro Barroso, sem qualquer alusão nominal ao empresário, repetiu o velho e desacreditado discurso acerca da pretensa defesa da democracia e das instituições por parte da suprema corte e encerrou seu texto afirmando que “decisões judiciais podem ser objeto de recursos, mas jamais de descumprimento deliberado[3].” Será?
No plano das decisões legítimas e proferidas de acordo com as normas vigentes no país, nossa lei processual é a primeira a garantir ao indivíduo inconformado com o teor de um julgado o direito de ingressar com um recurso, assim como a possibilidade de descumprir a decisão questionada, cujos efeitos permanecerão suspensos até o novo julgamento, na instância superior[4].
Saindo do terreno da legalidade para o da “heterodoxia”, no qual tem residido a maioria esmagadora das recentes decisões do Supremo, o Código Penal prevê uma redução de pena a agentes de crimes praticados “em cumprimento de ordem de autoridade superior[5].” Em outras palavras, o legislador se dispõe a reduzir a pena do autor de delitos cometidos em obediência a ordens de autoridades de nível hierárquico superior, mas, ainda assim, pune todo aquele que tiver delinquido para servir cegamente ao seu chefe. Nessa mesma toada, o Estatuto dos Servidores Federais impõe aos agentes estatais o dever de descumprir determinações manifestamente ilegais[6]. Em que reside essa tal ilegalidade manifesta? Por óbvio, em abusos que, de tão escancarados, possam ser identificados como tais, até por indivíduos não familiarizados ao direito.
Assim, um estranho ao universo jurídico como Musk, mas com indiscutível experiência nos ramos empresarial e de contratos, consegue perceber os desmandos na conduta de um togado que toma a iniciativa das providências judiciais, ferindo o princípio democrático da inércia do judiciário, e impõe censura prévia a conteúdos de postagens, sem a regular instauração dos respectivos processos e sem possibilidade de contestação por parte dos autores das publicações. Como arbítrio dos arbítrios, ou, no dizer do empresário, como “gota d’água”, eis que um juiz supremo chega ao cúmulo de coagir a parte demandada (o grupo X) a “inventar desculpas” para o que deveria ser simplesmente o fundamento legítimo de uma decisão. Só chancelam a regularidade de decisões dessa natureza os loucos de todo o gênero, ou os sabujos de plantão, cujo servilismo aniquilador da inteligência e da consciência os leve à crença absoluta na legalidade de todos os julgados supremos apenas por serem proferidos sob o elegante timbre da corte máxima do país.
Desconheço as motivações pessoais de Musk para a quebra do silêncio e a divulgação de denúncias sobre a imposição de exigências tão “ditatoriais”, em suas próprias palavras, por parte de um juiz encarregado de guardar a Constituição e as leis. Só posso imaginar que, a par de toda a reprovabilidade jurídica e ética dos desvios de conduta do magistrado, Musk tenha sido impulsionado, acima de tudo, por um fator causador de pruridos na imensa maioria dos nossos togados: as exigências de seu próprio mercado.
Ora, como líder no ramo de redes de comunicação em massa, Musk bem sabe que a cavalgada da censura alexandrina retirará de sua plataforma as opiniões divergentes da narrativa hegemônica, tornando-a isenta de polêmicas, discussões acaloradas e até das conhecidas brigas entre tuiteiros. A prevalecerem os julgados do “supremo dos supremos”, a rede tenderá a se tornar mais um espaço para fotos de famílias felizes, pets fofos e, sobretudo, para propagandas oficiais e oficiosas das mesmas baboseiras divulgadas pelo establishment. Pasteurizado e desinteressante, o X possivelmente atrairá um número cada vez mais reduzido de membros, acarretando, por consequência, uma inevitável queda de receita para o grupo.
Também deve ter pesado na decisão de Musk a necessidade de preservação do valor de sua marca, associada à livre disseminação de conteúdos, e, com ela, a defesa de todo o fundo de comércio edificado pela empresa, incluindo-se aí a imagem corporativa, o respeito e o prestígio às demandas da clientela, e a observância a rigorosas normas internas de compliance. Nessa seara de regras de conformidade, destacam-se o primado das cláusulas contratuais pactuadas com cada usuário-consumidor e, dentre elas, as obrigações de preservar a privacidade dos dados dos clientes e de reportar a estes todas as informações sobre eventuais litígios ensejados por publicações na rede, até para que o autor das postagens controversas possa exercer o seu amplo direito à defesa. Assim, é difícil imaginar que Musk fosse cumprir bovinamente uma série de despachos “aloprados”, comprometendo seu renome e sua reputação no mercado global apenas para a satisfação dos desejos de um tiranete de toga.
O recente imbróglio envolvendo Moraes e Musk parece confirmar a tese defendida por nós, liberais, sobre os elos estreitos e necessários entre liberdades econômicas e políticas. Nesse caso específico, Musk, na defesa de um ambiente livre em seu negócio, ativo indispensável à maximização de lucros no setor de comunicações digitais, acaba de se tornar o agente mais autêntico e eficaz na denúncia dos desmandos judiciais e na luta pela liberdade de seus clientes. Mais um caso ilustrativo do “perigo” representado por atores privados competitivos para regimes totalitários e dos expedientes sórdidos adotados por figurões estatais para o cerceamento das interações entre indivíduos e para a asfixia de empreendimentos inovadores que primem pela garantia das liberdades de seus usuários.
De volta à questão trazida em nosso parágrafo introdutório, não podemos comparar o poder de nossos togados àquele exercido sob o totalitarismo da Alemanha nazista ou da extinta União Soviética. Não em termos de fração de poder de mando, mas já sob o prisma de extrapolações arbitrárias por parte de agentes públicos. Trata-se de diferença de grau, não de essência. Afinal, ditaduras não são forjadas do dia para a noite, e, como revelado por Musk e constatado pelo menos nos últimos cinco anos, desde a instauração do inconstitucional Inquérito das Fake News, nosso ambiente jurídico-político tem se mostrado um meio de cultura bastante fértil para o desprezo cada vez mais desenfreado às liberdades e para o surgimento de déspotas não-eleitos. Cabe a nós, enquanto sociedade, a decisão sobre manter a nossa atual apatia conivente ou, ao contrário, rejeitar as ordens ilegais dos que deveriam ser os primeiros aplicadores da lei. Por fim, mas não menos importante, devemos deliberar se nos acovardaremos frente aos nossos representantes eleitos ou se faremos coro à recente indagação de Musk aos congressistas brasileiros: “Por que o Parlamento permite que Alexandre [de Moraes] tenha o poder de um ditador brutal? Eles foram eleitos, ele não foi. Expulsem-no[7].” Interjeição lúcida e independente, que não poderia mesmo ter partido de cidadãos de uma terra onde a censura e os atentados à liberdade de ir e vir já se incorporaram ao cotidiano.
[1] https://informejuridico.net/index.php/2024/04/06/musk-a-moraes-por-que-voce-esta-exigindo-tanta-censura-no-brasil/
[2] https://informejuridico.net/index.php/2024/04/08/musk-sobre-moraes-tinhamos-que-fingir-que-era-por-conta-das-nossas-regras/
[3] https://informejuridico.net/index.php/2024/04/09/apos-denuncias-de-musk-barroso-se-pronuncia/
[4] Art. 1.012 do Código de Processo Civil – A apelação terá efeito suspensivo.
[5] Artigo 65, III, c) do Código Penal
[6] Lei 8112/90: Art. 116. São deveres do servidor: (…) IV – cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais
[7] https://informejuridico.net/index.php/2024/04/09/musk-chama-moraes-de-ditador-brutal-que-mantem-lula-na-coleira-e-cobra-atitude-do-congresso-brasileiro/
PUBLICADAEMhttps://www.institutoliberal.org.br/blog/justica/desobediencia-versus-servilismo-o-x-da-questao/
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