Flávio Gordon:
Há pouco mais de um ano, escrevi aqui nesta Gazeta do Povo uma série de artigos sobre o MAiD (Medical Assistance in Dying), o programa de suicídio assistido instituído no Canadá pelo governo de Justin Trudeau. Partindo da preocupação de comentaristas canadenses, outrora entusiastas do MAiD, com a progressiva flexibilização dos critérios para a inclusão de candidatos no programa, propus uma discussão sobre os fundamentos filosóficos da cultura da morte contemporânea, da qual o MAiD é um caso emblemático.
Embora o programa tenha sido concebido originalmente apenas para pacientes em estado terminal, logo passou a admitir também indivíduos com Mal de Parkinson, esclerose múltipla e – o que é mais preocupante – pessoas sem enfermidade física constatada, mas afligidas por doenças mentais (incluindo aí a depressão), dificuldades financeiras ou problemas de sociabilidade. Segundo Madeline Li, psiquiatra especialista em cuidados paliativos para pacientes com câncer em estado terminal, o afrouxamento de critérios tem gerado a expectativa de acesso ao MAiD em pessoas simplesmente cansadas de viver. “Estive muito confortável com o MAiD quando voltado a pessoas que estão morrendo” – diz Li. “Mas me sinto menos confortável com essa expansão das indicações... Tornamos o MAiD tão aberto que, hoje, você pode requerê-lo por basicamente qualquer motivo”.
Às raias do mês de abril, mês de conscientização mundial acerca do autismo, um tribunal canadense autorizou pela primeira vez o acesso ao MAiD de uma jovem autista, a despeito dos protestos do pai
Como eu argumentava naquela série de artigos, a expansão desenfreada do programa derivava necessariamente de uma cultura radicalmente secularista para a qual a noção cristã de sacralidade de toda vida humana tornara-se obsoleta, sendo vista como um entrave reacionário à autonomia individual. A consequência inevitável do abandono da ética cristã – vale dizer, desse suicídio civilizacional – é uma perigosa hierarquização das vidas humanas, separadas entre dignas e “indignas de serem vividas”. Daí para a banalização e a comercialização da morte, basta um pulo...
Pois, recentemente, o Canadá assumiu uma vez mais a vanguarda da cultura da morte, cruzando mais uma linha, como era de se esperar, com o seu programa de suicídio assistido. Às raias do mês de abril, mês de conscientização mundial acerca do autismo, um tribunal canadense autorizou pela primeira vez o acesso ao MAiD de uma jovem autista, a despeito dos protestos do pai. Afora o diagnóstico de autismo e TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade), a jovem, identificada no processo como M.V., não possui deficiências físicas e incapacidades motoras.
O pai de M.V. (identificado como “W.V.”), obviamente desesperado ao saber da vontade da filha, entrou com um processo para impedir o desfecho trágico. Dois médicos foram consultados em dezembro para revisar a solicitação inicial de M.V. Um concordou em aprovar o pedido; o outro recusou. Um terceiro médico desempatou a disputa em favor da aprovação. De acordo com o pai, todavia, ele não era independente ou objetivo, e não se preocupou com o fato de M.V. ser psicologicamente vulnerável, e, portanto, incapaz de tomar uma decisão tão drástica sobre a própria vida.
Segundo a imprensa canadense, apesar de reconhecer o “profundo sofrimento” experimentado por W.V. diante da perspectiva da morte da filha, o juiz Colin Feasby decidiu que o processo de morte assistida deveria prosseguir. “A dignidade de M.V. e seu direito à autodeterminação superam as questões importantes levantadas por W.V. e o dano que ele sofrerá ao perder M.V.,” escreveu Feasby, concluindo que “os interesses de autonomia e dignidade de M.V. superam considerações concorrentes”.
O juiz acrescentou ainda que “o dano a M.V. se uma medida cautelar for concedida vai ao cerne de seu ser”, e que “a escolha entre viver e morrer com dignidade é exclusivamente de M.V.”. Feasby determinou um prazo de 30 dias a partir da decisão, para que o pai pudesse levar o caso ao Tribunal de Apelação de Alberta. O advogado de M.V. argumenta que o amor de W.V. pela filha “não lhe dá o direito de mantê-la viva contra a sua vontade”.
Tem-se nesse caso, mais uma vez, uma substituição da ética cristã, segundo a qual o valor da vida humana é intrínseco e absoluto, por uma ética secular relativista, que advoga pela “qualidade de vida” contra o “sofrimento desnecessário”. Os perigos dessa relativização, e os efeitos de sua persistência ao longo da história, deveriam ser bem conhecidos. Infelizmente, não são.
Flávio Gordon, Gazeta do Povo
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